Relativo estranhamento em moldura tradicional

Debora Lamm, Bel Kowarick e Maria Flor em A Ponte, montagem em cartaz no Teatro II do CCBB (Foto: Samuel Monticelli)

A filiação de A Ponte a uma tradição do realismo psicológico causa surpresa em se tratando do canadense Daniel MacIvor, dramaturgo conhecido pelo público brasileiro por meio de textos como In On It e A Primeira Vista, e do perfil de Adriano Guimarães como encenador, frequentemente voltado para uma intersecção entre o teatro e as artes plásticas (mantida, porém, em sua cenografia concebida em parceria com Ismael Monticelli) e para uma investigação da produção (em especial, os textos curtos) de Samuel Beckett, autor distante das plataformas da vertente realista.

MacIvor apresenta o público a três irmãs, em reencontro forçado devido ao agravamento do estado de saúde da mãe. Os conflitos decorrem das diferentes perspectivas de vida de cada uma: Theresa, atravessada por forte comprometimento religioso, Agnes, atriz que sofre com as consequências da rigidez familiar e externa insatisfação e angústia através de falas autorreferentes, e Louise, que enxerga o mundo pelo filtro dos seriados de televisão. O autor revela domínio do desenvolvimento do arco dramático, apesar da previsibilidade do crescente resgate afetivo empreendido por elas, nessa peça que desembarca no Teatro II do Centro Cultural Banco do Brasil, em tradução de Bárbara Duvivier.

O realismo é parcialmente tensionado através de breves solilóquios das personagens. O recurso traz à tona pulsações internas que ultrapassam a concretude dos fatos cotidianos. A relativização do realismo é ampliada, também em medida reduzida, por meio de letreiros exibidos em televisão, descritivos das rocambolescas histórias dos seriados de TV – reviravoltas novelescas, que, inclusive, extravasam da tela e passam a fazer parte da jornada de, pelo menos, uma das personagens, Agnes. A mencionada cenografia é outro elemento que gera estranhamento, seja pela adoção do vermelho como cor imperante que inevitavelmente imprime à cena uma visualidade sanguínea, seja pelo modo como os objetos aparecem dispostos no palco, com uma organização maníaca que sugere tanto estagnação quanto movimento de mudança.

As atrizes realçam os desenhos expressivos das personagens sem se limitarem à mera exposição de características evidenciadas no texto. Bel Kowarick transcende a esfera estreita da composição, projetando os silêncios de Theresa, o não-dito, em atuação bastante refinada. Debora Lamm confirma o apreciável timing de humor sem perder de vista as modulações emocionais de Agnes. Maria Flor valoriza certa alienação de Louise, sem, contudo, tipificá-la.

A surpresa suscitada por A Ponte está atrelada a uma construção dramatúrgica tradicional e as tentativas de ruptura das convenções em cena não resultam totalmente orgânicas, mas, ainda assim, o espetáculo desponta como uma prazerosa experiência emocional doce-amarga.