Massificação que não anula a singularidade

O Rinoceronte, montagem do Contágio Coletivo, segue temporada no Espaço Apis (Foto: Gabi Castro)

O panorama traçado em O Rinoceronte, texto de Eugène Ionesco na montagem dirigida por Ricardo Santos, é desolador. A súbita aparição de um rinoceronte em meio à cidade, causando destruição e medo, faz, aos poucos, com que os indivíduos se transformem no animal e sejam despidos, assim, de suas pessoalidades, passando a caminhar num bloco único, uniforme, destituídos de sensibilidade. Mas antes mesmo dessa metamorfose, a situação não era propriamente favorável, tendo em vista a descrição da sociedade como algo opressiva, uma estrutura na qual todos se veem obrigados a produzir de maneira incessante e sem lógica, característica simbolizada por uma sucessão de gestos cotidianos.

Contudo, apesar de mecanizados e norteados por um esforço de sincronia, esses gestos preservam, em certo grau, as especificidades daqueles que os executam, na medida em que resultam intencionalmente inexatos, como um jogo de espelhamento imperfeito. Além dos personagens individualizados, há, portanto, aqueles cujas individualidades são repartidas com outros personagens/atores. E o código da aparição do rinoceronte, realçado pela música de Rodrigo Marçal, é o desnudamento do ator – e a revelação dos corpos, em separado ou em grupo, evidencia singularidades.

As fisicalidades preenchem o espaço juntamente com elementos reduzidos: cadeiras e sapatos pendurados, papéis e caixas de papelão. Os 18 integrantes do elenco do Contágio Coletivo – Alex Teixeira, Alexandre Braga, Camila Koschdoski, Daniel Vargas, Isaak Vale, Jhully Steffany, Jorge Hissa, Jovan Ferrera, Juliane Cruz, Letícia Machado, Patrick Magalhães, Pri Helena, Raul Baldi, Rebeca Figueiredo, Rodrigo Lima, Samuel Vieira, Wayne Marinho e William Pavanelli – demonstram apreciável nível de intimidade com o texto, fluência na fala e nas marcações calculadas. É possível perceber atores com menos domínio do texto e da cena, mas a maioria forma um conjunto sólido e promissor. O rigor na construção da linguagem do espetáculo não cristaliza as atuações, que permanecem pulsantes, atravessadas pela emoção, a exemplo dos minutos finais da apresentação.

Encenação que chega à quarta temporada – passou pelo Teatro Armando Costa, pelo Terreiro Contemporâneo, pelo Espaço Montagem e estreou recentemente no Espaço Apis –, O Rinoceronte aborda com vitalidade o texto de Ionesco, escrito na segunda metade da década de 1950. Ainda que filiada a tradição do não-realismo, a peça foi influenciada pela experiência da guerra. Sem buscar sublinhar um elo entre a obra original e o mundo de hoje, a montagem, porém, estimula essa conexão.