A imagem que dança

Sara Antunes no solo Dora (Foto: Alessandra Nohvais)

O projeto da atriz Sara Antunes sobre a guerrilheira Maria Auxiliadora Lara Barcelos, apelidada de Dora, despontou no cinema, no curta-metragem “De Dora, por Sara” (concebido em parceria com Henrique Landulfo), e se estendeu para o teatro, no formato virtual, em trabalho que sintetiza o título (simplesmente “Dora”) e expande o conteúdo. A trajetória de Dora – que militou contra as arbitrariedades cometidas durante a ditadura brasileira, foi presa e torturada e passou por países diversos ao longo dos anos de exílio até se suicidar na Alemanha, em 1976 – atravessa Sara.

Não por acaso, imagens de Dora aparecem refletidas em Sara numa proposta cênica que, apesar de realizada ao vivo, entrelaça tempos históricos e subjetivos distintos. Sara interpreta Dora, diz as palavras da personagem real – na maior parte decorrentes de cartas endereçadas à mãe –, evidencia identificação com ela. O espelhamento entre atriz e personagem, porém, não é e nem poderia ser absoluto. O rosto de Sara, como Dora, surge refletido no espelho e na água como uma imagem nítida, mas que dança diante dos olhos do espectador.

Em determinado instante da apresentação, Ângela Bicalho, mãe de Sara, fala sobre os seus pontos de contato com Dora, sem, contudo, perder de vista as diferenças. Há uma percepção de que o estabelecimento de elos entre percursos de vida não precisa se dar por meio de uma equivalência forçada. Sem abandonar o foco intimista, Sara Antunes amplia a rede de conexões e conjuga a jornada de Dora com as de outras mulheres torturadas durante o regime militar, a exemplo da ex-presidente Dilma Rousseff.

Sara costura com linha e agulha a travessia de Dora, materiais que também remetem ao sacrifício do corpo e, particularmente, a tudo que Dora sofreu no período em que ficou presa. A articulação entre corpo e morte é constante. “Foi dissecando cadáver na aula de anatomia que eu dei o meu primeiro grito”, relata Dora, então estudante de medicina, declaração preservada tanto no filme quanto na encenação. Nas versões para o cinema e o teatro (manifestações agora especialmente interligadas devido ao modo como a prática teatral vem ocorrendo no contexto da pandemia) há momentos de exposição da interioridade do corpo, percorrido a partir da boca, de onde sai o mencionado grito.

Dora se impõe como uma ausência presente, simbolizada na imagem do vestido esvoaçante sem corpo, e como alguém que inevitavelmente carrega em si a tragédia viva (“mamãe, eu não consigo esquecer”). Sara Antunes, por sua vez, dialoga com a história de Dora, destacando a reverberação desse passado na contemporaneidade.