Cena de Mateus, 10, espetáculo do grupo Tablados de Arruar (Foto: Otávio Dantas)
A companhia paulistana Tablados de Arruar apresentou ao público do Rio de Janeiro repertório composto pela encenação de Mateus, 10 e pela Trilogia Abnegação (Abnegação I, Abnegação II – O Começo do Fim, Abnegação III – Restos). Trata-se de uma importante iniciativa do Espaço Sesc, onde os espetáculos foram mostrados, na medida em que o intercâmbio entre trabalhos de grupos teatrais de cidades distintas muitas vezes não ocorre. Vale lembrar que o Sesc também trouxe recentemente, de São Paulo, a encenação de Cais ou Da Indiferença das Embarcações, da Velha Cia.
Há em Mateus, 10, montagem anterior à Trilogia Abnegação, um certo questionamento do conceito de interioridade a partir da jornada do pastor Otávio, que se tornou mais pragmático que espiritualizado. Na dramaturgia de Alexandre Dal Farra, o pastor externa seu desapego pela interioridade, definida com frequência como espaço depositário das emoções, da essência de cada indivíduo, oposta à aparência, normalmente entendida como embalagem, como uma espécie de capa enganadora e sedutora. O pastor parece desconfiar desse jogo de contrastes, mas se fixa na literalidade da aparência sem chegar a percebê-la como instância reveladora. Nesse sentido, o dinheiro tem que estar limpo. As notas poluídas precisam ser descartadas. O frango que ele rejeita no jantar deve apodrecer. A preocupação com a aparência se manifesta ainda no creme para pele vendido pela esposa do pastor – creme, porém, que a própria vendedora não usa.
O espetáculo dirigido por Dal Farra e João Otávio é dividido em três partes realçadas por mudanças na disposição espacial. A primeira coloca o espectador diante da desestabilização de Otávio em sua fé, crise que extravasa para a relação conjugal. Na segunda parte, o público é deslocado para outro espaço e passa a pertencer à massa de fiéis que preenche a igreja de Otávio. Na terceira, a plateia é deslocada novamente para assistir ao clímax dos conflitos num encontro entre todos na casa de um personagem onde imperam a ruína e a decadência morais. Esse último ato traz uma alteração de registro, substituindo a solenidade marcante até então pelo humor patético.
Essas variações chamam atenção nas dramaturgias dos espetáculos da Trilogia. Em Abnegação I, o texto é lacunar, destituído da intenção de localizar com exatidão o espectador acerca do contexto histórico no qual os personagens estão mergulhados. Em Abnegação II, a localização é feita. Logo no início do espetáculo, a plateia é informada de que o grupo se inspirou no assassinato do político Celso Daniel. Mas não há o intuito de reconstituir os acontecimentos de maneira tradicionalmente documental porque é impossível acessar o modo como se deram. Afinal, a evocação do passado é ficcional, resultante de uma interpretação dos fatos. Em toda a Trilogia (mas, em especial, em Abnegação III) há cenas em que os personagens dialogam sem se olharem, com os atores dispostos de frente para o público, recurso empregado talvez com o objetivo de assinalar a ausência de interação entre eles. Os atores – Alexandre Tavares, Amanda Lyra, André Capuano, Antonio Salvador, Clayton Mariano, Gabriela Elias, Janaina Leite, Vinicius Meloni e Vitor Vieira – aderem a um registro expansivo sem, contudo, enveredarem pela trilha do exagero. Constroem personagens críveis, distantes da mera caricatura.
Cena de O Pão e a Pedra, montagem da Cia. do Latão (Foto: Lenise Pinheiro)
Em O Pão e a Pedra, montagem em cartaz no Teatro III do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) até a próxima segunda-feira, os integrantes da Companhia do Latão evidenciam vínculo com o universo que abordam – o das greves metalúrgicas no ABC paulista no final dos anos 1970, retratado de modo a suscitar no público um elo com os dias de hoje –, comprovando o caráter político de seu trabalho. Sem perder a conexão com a realidade, o grupo aposta em dramaturgia (assinada pelo diretor Sérgio de Carvalho) que realça a ficção por meio da projeção de trecho de filme e do destaque aos mecanismos de representação através de personagens (a operária ao camuflar sua identidade através de aparência masculina) e situações (o garoto ao brincar de colocar bigode, a outra operária ao esconder a própria gravidez). São momentos que acentuam o jogo dos disfarces, procedimento marcadamente teatral.
A Companhia do Latão conjuga passado e presente ao revelar aqui ecos do Teatro de Arena, em especial no que se refere ao investimento numa dramaturgia voltada para os menos abastados e à tensão entre o dramático e o épico. Esse dado, importante em textos do final da década de 1950 escritos e encenados dentro do grupo fundado por José Renato, se materializa, em O Pão e a Pedra, na oscilação entre a necessidade individual e o bem coletivo e na valorização de pessoas específicas que, porém, simbolizam uma determinada condição sócio-econômica num panorama que as transcende. Não há como deixar de evocar, particularmente, Eles não usam Black-Tie, texto de Gianfrancesco Guarnieri dotado dessas características, cuja montagem alavancou a trajetória do Arena em 1958. Na adaptação para o cinema, pouco mais de 20 anos depois, Leon Hirszman alterou o contexto original da peça (uma favela do Rio de Janeiro) para o das greves do ABC, o mesmo de O Pão e a Pedra.
A dramaturgia traz a alternância entre a narração – em certo instante, o público é informado de que Luiz Inácio Lula da Silva será mencionado, mas não interpretado por algum ator, talvez pelo fato de o foco do texto recair sobre homens e mulheres comuns e não sobre líderes – e a vivência – cabendo assinalar a imersão dos atores (Beto Matos, Debora Rebecchi, Érika Rocha, Helena Albergaria, João Filho, Ney Piacentini, Rogério Bandeira, Sol Faganello e Thiago França) nas circunstâncias lançadas pelo texto. Espetáculo que não reproduz o real, mas dialoga com essa esfera, O Pão e a Pedra sugere fragmentos de ambientes significativos para os personagens, tanto no que diz respeito ao mundo do trabalho quanto à breve suspensão do cotidiano duro, na cenografia de Cassio Brasil, composta por uma estrutura circular e por elementos dispostos ao redor (armário de vestiário, pedaços de carros, tanque, miniatura de roda gigante). A direção musical de Lincoln Antonio, executada ao vivo, influencia decisivamente na temperatura da cena e na construção de atmosferas.
Larissa Bracher em Genderless – Um Corpo Fora da Lei (Foto: Elisa Mendes)
O projeto Operação Rio Diversidade, em cartaz até o próximo sábado no Teatro do Sesi, é composto por quatro solos conduzidos por artistas diferentes – autores, diretores e atores. Idealizada por Marcia Zanelatto, a iniciativa, contudo, evidencia sintonia entre as suas partes, sem que esse entrosamento resulte em uniformização.
As abordagens de sexualidades distintas dos padrões pré-estabelecidos unem, de modo abrangente, os quatro textos. Em Genderless – Um Corpo Fora da Lei, escrito por Zanelatto, ocorre um ritual de despedida do próprio corpo por meio da evocação da jornada verdadeira de Norrie May-Welby, que, após viver 26 anos como homem, “renasce” em corpo feminino, mudança, porém, que não apazigua por completo sua íntima sensação de desencontro. A autora destaca o descompasso entre corpo e alma, a sexualidade como elemento de constituição do indivíduo (“De quem é o seu corpo com todas as suas intimidades?”) e lança uma questão: seria o personagem atravessado pela necessidade de ter todas as possibilidades, pela dificuldade de não abrir mão de qualquer alternativa e, assim, de lidar com a perda, ou portador de uma multiplicidade genuína (“há em meu corpo uma infinidade de órgãos extremamente sexuais”)?
A realidade também inspirou Joaquim Vicente em A Noite em Claro. O macabro assassinato de um homem por um garoto de programa com mais de 100 facadas traz à tona a morte brutal do encenador Luiz Antônio Martinez Corrêa na segunda metade da década de 1980. Na estrutura do texto, o ator (Thadeu Matos) transita entre os dois papéis antagônicos – o do michê que, num violentíssimo ato catártico, revela uma sexualidade mal resolvida (“De quantas facadas você precisa para eliminar o seu ódio?”) e o da vítima. A repressão ganha tratamento diverso em Como Deixar de Ser, de Daniela Pereira de Carvalho, sobre uma mulher que, sufocada, externa a ânsia por contato com outra, algo jamais concretizado (“Nós nunca nos vimos nuas. Apenas parte do corpo”). A personagem expressa culpa pelo que sente (“Eu nunca vou ter coragem de colocar para fora esse desejo estocado”), herança do convívio com a mãe. Não consegue exercer o desejo e nem se manter em permanente opressão. A pluralidade sexual, presente em Genderless – Um Corpo Fora da Lei, é realçada, de maneira bem menos promissora, em Flor Carnívora, texto estéril de Jô Bilac ambientado numa sociedade vegetal.
As partes de Operação Rio Diversidade não têm no universo temático o único ponto em comum, tendo em vista as conexões entre as contribuições artísticas que se somam no espetáculo. Apesar de capitaneados por diretores variados, os monólogos contam com os mesmos profissionais em áreas como as de cenografia (Daniel de Jesus) e iluminação (Daniela Sanchez). A integração fica especialmente clara nas propostas de iluminação, o que não significa que se reiterem umas às outras. Parece existir uma conceituação na concepção da luz, que restringe propositalmente o acesso integral dos espectadores às imagens cênicas (em muitos momentos, o público vê “tão-somente” fragmentos dos atores), descortinadas aos poucos. Em Flor Carnívora há um longo trecho no escuro. Quando a luz volta, a atriz Gabriela Carneiro da Cunha demora a mostrar o rosto à plateia. Em Como Deixar de Ser predominam as gradações sutis. Em determinados solos, os atores manipulam, em certa medida, a luz sobre os próprios corpos. São os casos de Uma Noite em Claro, no qual a silhueta do ator “estampa” a tela, onde é projetado, logo após, seu rosto, e de Genderless – Um Corpo Fora da Lei, no qual o rosto de Larissa Bracher é parcialmente iluminado pela tela de um aparelho.
Já no campo da cenografia há menos unidade, o que não deve ser considerado como demérito. Em Como Deixar de Ser é notável a concentração de objetos antigos (vitrola, baú, abajur), de acordo com o perfil da personagem, e em Uma Noite em Claro causa impacto a mesa repleta de facas espetadas. Os figurinos sintetizam a condição dos personagens (como o traje masculinizado em Genderless – Um Corpo Fora da Lei) ou confirmam seus estados emocionais (as cores fechadas sublinhando a repressão da mulher de Como Deixar de Ser). A música é uma escolha constante para encerrar os solos – ocasionalmente, entoada pelos atores.
Os diretores potencializam as atuações. Em Genderless – Um Corpo Fora da Lei, Guilherme Leme Garcia valoriza a partitura física de Larissa Bracher, que domina a cena com voz suave e densa. Em Como Deixar de Ser, Renato Carrera aproxima Kelzy Ecard da frequência contundente de uma personagem em instante de extravasamento. Em Uma Noite em Claro, Cesar Augusto faz com que Thadeu Matos oscile de forma expressiva entre os extremos da situação. Em Flor Carnívora, Ivan Sugahara leva Gabriela Carneiro da Cunha a adotar um tom de explanação diante da plateia. Interligados por breves aparições de Magenta Dawning, que contrastam com a dramaticidade da maioria dos textos, os monólogos de Operação Rio Diversidade, em que pese uma eventual irregularidade, apresentam apreciável vínculo no palco.
Antígona e Mata teu Pai são apropriações de tragédias gregas que empregam procedimentos diversos em relação aos textos de origem. No caso da primeira, em cartaz no Teatro Poeirinha, o diretor Amir Haddad e a atriz Andrea Beltrão mantêm o título da peça de Sófocles e recorrem à tradução de Millôr Fernandes inserindo eventualmente linguajar afinado com a contemporaneidade; na segunda – que encerrou apresentações no Espaço Cultural Sergio Porto e terá sessões no Gamboavista e no Festival de Curitiba –, Grace Passô concebeu uma peça autônoma a partir de Medeia, de Eurípedes.
As operações dramatúrgicas visam à amplitude temporal. Em Antígona, Haddad e Beltrão não se “limitam” aos fatos circunscritos nesse texto específico. Estampam na parede do teatro cartazes destacando a descendência de Antígona. Uma arqueologia que traz à tona não apenas as duas peças anteriores da Trilogia Tebana – Édipo Rei e Édipo em Colono –, como um passado ainda mais remoto. Já o vocabulário ocasionalmente informal e popular da atriz é um mecanismo que tende a promover um elo com o espectador de hoje.
Esse recurso, por si só, resultaria artificial e insuficiente. No entanto, a peça de Sófocles realça embates que continuam pertinentes nos dias atuais – em especial, no que diz respeito ao conflito entre a lei instituída e a determinação individual. No texto, Creonte, rei de Tebas, proíbe que Polinice, classificado como traidor de guerra, que morreu em luta contra o irmão, Eteocles, seja enterrado. Irmã de ambos, Antígona desobedece a ordem do monarca. Age de acordo com seu princípio moral, que considera como a lei mais importante a ser seguida.
Além do potencial reflexivo da peça, a conexão com o aqui/agora é frisada, na encenação de Haddad, por meio da materialização de uma Antígona que sua e se descabela. As heroínas trágicas normalmente pertencem a dinastias nobres, distantes da massa, mas humanizadas devido à exposição de suas falhas – são dominadas por sentimentos proibidos. Fragilizada pela tragédia familiar (a descoberta do parentesco dos pais, a cegueira de Édipo, a morte dos irmãos), Antígona, na versão de Haddad/Beltrão, desponta como figura carnal, com a qual se pode estabelecer identificação.
Há uma quebra de hierarquia tanto no modo nada submisso do encenador e da atriz na abordagem da obra de Sófocles quanto na proposta de vínculo firmada com a plateia. Andrea Beltrão recebe os espectadores na entrada do teatro e permanece no palco, ao final, à disposição do público. A suspensão da quarta parede fica concentrada nesses minutos anteriores e posteriores à sessão propriamente dita. Se por um lado a instalação e preservação (pelo menos, parcial) da barreira entre plateia e espetáculo durante a maior parte do tempo não direciona a atriz para a adoção de um tom interpretativo austero, hierático, por outro Beltrão não envereda por um registro de atuação invisível, transparente, naturalizado. A composição da personagem é evidenciada por meio de um trabalho corporal vigoroso, expansivo, sem que esse caminho implique necessariamente em perda de contato com a palavra ou de reverberação íntima dos acontecimentos, a exemplo das passagens em que Antígona expressa as justificativas pessoais que motivam suas ações. São instantes de verticalização, diferentes daqueles em que a atriz transita por outros personagens além da heroína esboçando fisicalidades de maneira mais propositadamente sugestiva do que acabada. Prevalece, contudo, um tom interpretativo que sinaliza a preocupação em aproximar a tragédia do público.
Debora Lamm em Mata teu Pai (Foto: Aline Macedo)
Em Mata teu Pai, novo projeto da Cia. OmondÉ, Grace Passô comprova que a tragédia atravessa os séculos ao traçar uma ligação entre a origem de Medeia – estrangeira que abandonou sua pátria para acompanhar Jasão, assassinando, na fuga, o próprio irmão – e a via-crúcis enfrentada pelos imigrantes na atualidade – com foco no contexto da Síria. O caráter político da dramaturgia também transparece na inversão sexual (ao invés de filhos, Medeia tem duas filhas), alteração que dialoga com a reivindicação de igualdade de direitos da mulher em relação ao homem nos dias de hoje.
Diretora da montagem, Inez Viana aprofunda a articulação contida no texto ao tematizar os excluídos de agora por meio de um coro formado por mulheres do povo (moradoras da região da Gamboa, com mais de 65 anos) e, entre elas, um homem travestido, em referência aos portadores de sexualidades distintas dos padrões pré-fixados, ainda vitimados diariamente. A diretora investe em aproximação entre o espetáculo e os espectadores ao destiná-los os papéis das filhas de Medeia. Em dado momento há uma cena de amamentação que insinua que as integrantes do coro representariam as filhas, mas essa possibilidade fica circunscrita à passagem mencionada. O título do texto dá a impressão de atribuir uma função ativa às filhas, como se Medeia transferisse para elas o ato de matar – assassinar Jasão, o homem que a abandonou para casar com uma mulher mais jovem e mais rica, e não as crianças, como estratégia para atingir o ex-marido, conforme acontece no original –, mas essa mudança mais instiga a imaginação do que se impõe como leitura fechada.
Como Medeia diante das filhas (espectadores), Debora Lamm argumenta com intensidade direta e contundente. Inflama-se, em certos instantes, sem, porém, se exceder, demonstrando cuidado em controlar a emoção. Sintonizada com as questões levantadas na dramaturgia e na encenação, a atriz evoca sua própria descendência ao entoar canto judaico. Viana, escorada no texto de Passô, inclui Medeia numa contemporaneidade caótica, numa atmosfera desoladora, a julgar pela paisagem apocalíptica – repleta de computadores quebrados e amontoados de forma estilizada como num escombro, numa ruína – da cenografia de Mina Quental. Um panorama acentuado pelo figurino cor de carne, gasto, de Sol Azulay, pela partitura sonora áspera, rascante (direção musical de Felipe Storino) e pela iluminação agressiva (abusando do efeito de cegueira junto ao público), apesar de dosada nas cenas realizadas no fundo do palco e com bom resultado no aproveitamento do globo espelhado, de Nadja Naira e Ana Luzia de Simoni.
Antígona e Mata teu Pai são trabalhos que intencionalmente não se ajustam a um padrão de acabamento. Enquanto a encenação de Amir Haddad deixa à mostra uma aparência de esboço – por meio da atriz que subverte as habituais recomendações ao público antes do início da sessão (celulares podem ficar ligados) e da aparelhagem de som e da mesa com água à vista dos espectadores –, a de Inez Viana extrai parte de sua potência das presenças de não profissionais no coro. São opções que decorrem, em algum grau, dos olhares dessacralizados lançados na direção do clássico.
Auê, musical dirigido por Duda Maia (Foto: Bruno Braga)
Musical do grupo Barca dos Corações Partidos, Auê saiu consagrado da quarta edição do Prêmio Cesgranrio de Teatro, que tomou conta do Copacabana Palace na noite da última terça-feira. O outro espetáculo contemplado em mais de uma categoria foi Gritos, da Cia. Dos à Deux. A cerimônia, apresentada por Irene Ravache e Eriberto Leão, teve como homenageada a atriz Nicette Bruno e contou com um marcante discurso de agradecimento do ator Marcos Caruso.
Premiados:
Espetáculo – Auê
Direção – Duda Maia (Auê)
Direção Musical – Alfredo Del-Penho e Beto Lemos (Auê)
Atriz – Debora Bloch (Os Realistas)
Atriz em Teatro Musical – Laira Garin (Gota D’Água (A Seco))
Ator – Marcus Caruso (O Escândalo Philippe Dussaert)
Ator em Teatro Musical – Alexandre Rosa Moreno (A Cuíca do Laurindo)
Autor – Grace Passô (Vaga Carne)
Cenografia – André Curti e Artur Luanda Ribeiro (Gritos)
Figurino – Luiza Fardin (Se eu Fosse Iracema)
Iluminação – Artur Luanda Ribeiro e Hugo Mercier (Gritos)
Categoria Especial – Wolf Maya (pela construção do Teatro Nathalia Timberg)
Auê concorre em cinco categorias do Prêmio APTR (Foto: Divulgação)
O musical Auê lidera as indicações ao Prêmio APTR, que tem, como elementos diferenciais, a categoria de produção (concedida pelos próprios integrantes da associação) e a separação entre atores protagonistas e coadjuvantes.
Indicados:
Espetáculo – A Paz Perpétua, Auê, Gritos, Nós
Direção – Aderbal Freire-Filho (A Paz Perpétua), Artur Luanda Ribeiro e André Curti (Gritos), Duda Maia (Auê), Márcio Abreu (Nós)
Autor – Cláudia Mauro (A Vida Passou por Aqui), Felipe Vidal (Cabeça — Um Documentário Cênico), Fernando Marques (Se eu Fosse Iracema), Grace Passô (Vaga Carne)
Ator Protagonista – Kiko Mascarenhas (O Camareiro), Marcos Caruso (O Escândalo Philippe Dussaert), Otto Jr. (Amor em Dois Atos), Zécarlos Machado (Gata em Telhado de Zinco Quente)
Atriz Protagonista – Adassa Martins (Se eu Fosse Iracema), Cláudia Mauro (A Vida Passou por Aqui), Debora Bloch (Os Realistas), Julia Lund (Amor em Dois Atos), Laila Garin (Gota D’água [A Seco]), Suzana Faini (O Como e o Porquê)
Ator Coadjuvante – Ary França (Galileu Galilei), Gustavo Damasceno (Os Cadernos de Kindzu), Pedroca Monteiro (Sucesso), Stéphane Brodt (Os Cadernos de Kindzu)
Atriz Coadjuvante – Clara Carvalho (Anti-Nelson Rodrigues), Juliana Guimarães (Sucesso), Luciana Lopes (Os Cadernos de Kindzu), Lydia Del Picchia (Nós)
Cenografia – André Cortez (O Camareiro), Daniela Thomas e Camila Schmidt (Os Realistas), Fernando Mello da Costa e Estúdio Radiográfico (Céus), José Dias (Dorotéia), Márcio Medina (Galileu Galilei)
Figurino – Beth Filipecki e Renato Machado (O Camareiro), Carol Lobato (Cinderela), Kika Lopes (Auê), Luiza Fardin (Se eu Fosse Iracema), Lulu Areal (Dorotéia)
Iluminação – Jorge Farjalla, Patrícia Ferraz e José Dias (Dorotéia), Artur Luanda Ribeiro e Hugo Mercier (Gritos), Maneco Quinderé (O Como e o Porquê), Beto Bruel (Os Realistas)
Música – Alfredo Del-Penho e Beto Lemos (Auê), Luciano Moreira e Felipe Vidal (Cabeça — Um Documentário Cênico), Beto Lemos, Fernando Mota e Marcelo H (Gritos), Nando Duarte (Gilberto Gil, Aquele Abraço — O Musical), Stéphane Brodt (Os Cadernos de Kindzu)
Categoria especial – Wolf Maia (pela construção do Teatro Nathalia Timberg), Eduardo Rieche (pelo lançamento do livro Yara Amaral, a Operária do Teatro), Flávio Marinho (pelo lançamento do livro Teatro é o Melhor Programa), Cesar Augusto (pela multiplicidade de suas ações artísticas), Projeto Rio Diversidade
Produção – Auê, Gota D´água [A Seco], O escândalo Philippe Dussaert, Os Realistas
Gritos, encenação da Cia. Dos à Deux (Foto: Renato Mangolin)
O teatro apresentado no Rio de Janeiro ao longo de 2016 foi tomado por temporadas meteóricas, fator que dificultou a repercussão das encenações – por isso, voltadas a um público reduzido. O problema não está na realização de projetos específicos para plateias restritas – algo que pode evidenciar um desejo genuíno de estabelecer uma relação individualizada com o espectador –, mas na concentração da atividade teatral num círculo cada vez mais diminuto.
Aqueles que se dedicam a propostas investigativas, de cunho notadamente autoral, costumam permanecer em cartaz durante pouco tempo e enfrentam obstáculos para retornar ao circuito; já o teatro de mercado desponta com frequência decrescente. Em todo caso houve espetáculos representativos, mais no primeiro semestre do que no segundo e tanto de companhias quanto avulsos.
Além das montagens listadas abaixo, trabalhos em encenações diversas devem ser destacados. Em termos de atuação, as de Caco Ciocler em Caesar – Como Construir um Império, Bernardo Marinho em Os Sonhadores, Emilio de Mello e Debora Bloch em Os Realistas, Laila Garin em Gota D’Água (a Seco), Helena Varvaki em A Outra Casa, Denise Fraga em Galileu Galilei, Luciano Chirolli em Memórias de Adriano, Kiko Mascarenhas em O Camareiro, Grace Passô em Vaga Carne, Vilma Melo em Chica da Silva – O Musical, Julia Lund em Amor em 2 Atos, Marcos Caruso em O Escândalo Philippe Dussaert, Juliana Guimarães e Pedroca Monteiro em Sucesso e Ricardo Kosovski em Boa Noite, Professor. Entre as direções mais expressivas, as de Eduardo Wotzik em Estudo paraMissa para Clarice, Aderbal Freire-Filho em A Paz Perpétua e Adriana Schneider e Lucas Oradovschi em Cidade Correria. As dramaturgias de Jacy, assinada por Pablo Capistrano e Iracema Macedo (com colaboração de Henrique Fontes), Alice Mandou um Beijo, a cargo de Rodrigo Portella, e O Açougueiro, de autoria de Samuel Santos, merecem menção.
Também cabe elogiar as cenografias de Daniela Thomas e Camila Schmidt em Os Realistas, Adriano e Fernando Guimarães e Ismael Monticelli em Hamlet – Processo de Revelação, Rodrigo Portella em Alice Mandou um Beijo, André Cortez em Gota D’Água (a Seco), Aurora dos Campos em Os Sonhadores e Camila Rodrigues em Antes do Café; os figurinos de Lulu Areal em Doroteia, Kika Lopes em Gota D’Água (a Seco), Luiza Fardin em Se eu Fosse Iracema, Marcelo Olinto em Gilberto Gil – Aquele Abraço e Thanara Schönardie em Valsa nº6; as iluminações de Roberto Alvim em Caesar – Como Construir um Império, Tomás Ribas em Fatal, Rodrigo Belay em Os Sonhadores, Nadja Naira em Vaga Carne, Aline Santini em Chet Baker – Apenas um Sopro e Lucia Koch e Carolina Mendonça em Tragédia: uma Tragédia.
Houve ainda importantes contribuições, como os livros Teatro é o Melhor Programa, de Flavio Marinho, e Yara Amaral: a Operária do Teatro, de Eduardo Rieche, a idealização do projeto Que Tempos são Esses?, da Cia. Ensaio Aberto, composta por exposição, leituras dramatizadas, seminários e mostra de filmes marcando os 60 anos da morte de Bertolt Brecht, o recorte de espetáculos poloneses, a exibição de vídeos de encenações de Tadeusz Kantor e a realização de debates em ambiente universitário no Tempo Festival, a direção de movimento de Renato Vieira em Lili e a Rede Baixada em Cena, que reuniu 18 coletivos de 13 cidades da Baixada Fluminense, iniciativa relevante a julgar pela pouca circulação dos espetáculos e grupos. Vale registrar a inauguração de espaços teatrais – o Nathalia Timberg, acoplado à sala Nathalinha, o Cesgranrio e o Riachuelo – num momento em que tantos foram demolidos ou continuam fechados.
Nós, montagem do Grupo Galpão (Foto: Guto Muniz)
DESTAQUES:
CABEÇA (UM DOCUMENTÁRIO CÊNICO) – Musical do coletivo Complexo Duplo, com dramaturgia, assinada pelo diretor Felipe Vidal, centrada num diálogo entre passado e presente. O álbum Cabeça Dinossauro, dos Titãs, de 1986, é evocado sem que se perca de vista os dias de hoje. A integração entre os atores/músicos (Felipe Antello, Felipe Vidal, Guilherme Miranda, Gui Stutz, Leonardo Corajo, Lucas Gouvêa, Luciano Moreira e Sergio Medeiros) sobressai.
CAIS OU DA INDIFERENÇA DAS EMBARCAÇÕES – Montagem da Velha Companhia, dirigida por Kiko Marques (acumulando ainda as funções de autor e ator), que concilia as instâncias do dramático e do épico ao focar nas jornadas de personagens específicos – pertencentes a diferentes gerações que moram em Ilha Grande ou seguem vinculados a essa localidade depois de terem saído de lá – e, a partir das trajetórias deles, apresentar um breve panorama do Brasil ao longo de décadas do século XX.
O COMO E O PORQUÊ – Encenação elegante e sóbria de Paulo de Moraes para o texto da americana Sarah Treem sobre o conflito entre duas mulheres de gerações distintas que pertencem à mesma área. Suzana Faini comprova domínio na articulação entre pensamento e fala, convence sobre a intimidade da bióloga com o universo abordado e demonstra precisão nas transições propostas pela dramaturga. Na iluminação, Maneco Quinderé destaca os espaços de ausência.
ESSE VAZIO – O diretor Sergio Módena conseguiu apreciável equilíbrio interpretativo entre os atores Daniel Dias da Silva, Gustavo Falcão e Sávio Moll na encenação do texto do argentino Juan Pablo Gómez sobre o encontro de três amigos de infância no velório de um quarto.
GATA EM TELHADO DE ZINCO QUENTE – Eduardo Tolentino de Araujo indica possibilidades de leitura para o texto de Tennessee Williams a partir da proposta cenográfica de Ana Mara Abreu e Alexandre Toro e do figurino de Gloria Kalil para Maggie. O vestido encardido de Maggie e o esqueleto de uma cama e os espelhos embaçados que compõem o cenário explicitam (sem reiterar) o desgaste dos relacionamentos que atravessam a peça. No elenco, Zecarlos Machado frisa a rispidez de Paizão sem enveredar por linearidade redutora da humanidade do personagem.
GRITOS – André Curti e Artur Luanda Ribeiro dão continuidade e renovam a pesquisa que move a Cia. Dos à Deux, voltada para um teatro sem uso de palavras. Aqui, assinam um espetáculo político, mas nada panfletário, e colocam o espectador diante do desafio de ver demais (os atores por trás das máscaras) e, ao mesmo tempo, de menos (a iluminação, de Ribeiro e Hugo Mercier, propositadamente reduzida).
LEITE DERRAMADO – Roberto Alvim estabelece uma relação criativa com a obra original de Chico Buarque, procurando extrair um sumo, a partir de uma leitura autoral, ao invés de se limitar a descortinar um enredo diante do público. O diretor assina uma montagem rigorosa, valorizada pelo trabalho minucioso e contundente de Juliana Galdino como o centenário Eulálio D’Assumpção.
MYRNA SOU EU – Sob o pseudônimo de Myrna, Nelson Rodrigues assinou coluna no jornal Diário da Noite, em 1949. Nessa montagem de Elias Andreato, porém, Myrna transmite conselhos sentimentais num programa de rádio a partir da leitura de cartas enviadas pelos ouvintes. A interpretação de Nilton Bicudo revela domínio corporal e vocal. O ator não limita o trabalho à caracterização; ao contrário, apropria-se da feminilidade. Sem enveredar por linha apelativa, diverte o público graças a precisa noção de timing.
UM NOME PARA ROMEU E JULIETA – Dani Lossant realiza uma nova visita ao projeto encenado há dez anos dentro do ambiente universitário. Os atores (Diogo Liberano, Carolina Ferman, Andrêas Gatto, Daniel Chagas, Márcio Machado e Morena Cattoni) imprimem marcas de presença no espaço, cada vez mais poluído. Juntamente com a cenografia (da própria Lossant), os figurinos de Luci Vilanova exibem evidências de uso e contribuem para um visual nada asséptico. A destacar ainda, a direção de movimento de Nathalia Mello.
NÓS – A sobrevivência do Galpão ao longo de mais de três décadas coloca o grupo numa certa posição de resistência frente ao contexto da cena contemporânea, na medida em que as companhias de porte médio tendem a sucumbir diante dos obstáculos crescentes (fenômeno que já ocorreu com as grandes). A preparação de uma sopa simboliza o projeto conjunto, que, porém, não é executado harmoniosamente. O jogo de repetições contido na dramaturgia (a cargo do diretor Marcio Abreu e do ator Eduardo Moreira) evidencia o cansaço nas relações, fragilizadas por ânimos cada vez mais exaltados. No elenco, Teuda Baura concentra as atenções.
Cena de Leite Derramado, montagem de Roberto Alvim para o livro de Chico Buarque (Foto: Edson Kumasaka)
Nessa transposição do romance homônimo (Leite Derramado) de Chico Buarque para o palco, apresentada recentemente no Teatro Sesc Ginástico, o diretor Roberto Alvim percorre, por meio do protagonista, o aristocrata centenário Eulálio D’Assumpção, “um labirinto de 500 anos”. O personagem externa saudade do glamour do passado e perplexidade diante das transformações decorrentes da passagem do tempo (“Acabo de me lembrar que o casarão não existe mais”, “O jardim virou estacionamento da embaixada da Dinamarca”).
O apego a um período de pompa e a desconexão com o presente – características de Eulálio, que ficou reduzido a um “rosto na moldura dourada” – evocam a dramaturgia de Anton Tchekhov. Contudo, mais do que o contraste entre passado e presente, Buarque capta – e Alvim ressalta nessa sua versão cênica – a perpetuação do preconceito, da lógica da exclusão, questão que pode remeter, longinquamente, ao virulento cinema de Sergio Bianchi, em especial ao filme Quanto Vale ou é por Quilo? (2005). Trata-se de um discurso potente, mesmo que realçado com certa reiteração durante o espetáculo. De qualquer modo, Roberto Alvim estabelece uma relação criativa com a obra original, procurando extrair um sumo, a partir de uma leitura autoral, ao invés de se limitar a descortinar um enredo diante do público.
O diretor assina uma montagem rigorosa, valorizada pelo trabalho de Juliana Galdino. A atriz incorpora Eulálio, personagem que porta o acúmulo de seus descendentes. Mas a incorporação não deve ser entendida como ausência de técnica. Ao contrário, a técnica se manifesta nos primeiros momentos da atriz em cena, como se a construção não tivesse sido encoberta por completo, impressão, porém, que logo se desfaz. A atuação de Galdino, minuciosa desde a sua aparição inicial, se torna rapidamente orgânica. Caio D’aguilar, Diego Machado, Luís Fernando Pasquarelli, Marcelo Gritten, Nathalia Manocchio, Renato Forner e Taynã Marquezone evidenciam integração à proposta do espetáculo, centrado, em todo caso, no inegável domínio interpretativo de Galdino.
Como Galdino, Eulálio ocupa um lugar absoluto na cena. No começo da montagem, atores surgem com máscaras que parecem escafandros. Uma despersonalização que acentua a figura de Eulálio, apesar de, como os demais personagens, ele despontar mais como símbolo de uma determinada visão de mundo do que propriamente como uma individualidade. O protagonista traz à tona uma perspectiva histórica – mas nem didática, nem linear (“As pessoas vão se amontoando de qualquer jeito na vida da gente”) –, também sugerida na cenografia, a cargo do próprio Alvim, na qual os muros se impõem como uma sucessão de barreiras. A iluminação de Domingos Quintiliano oscila entre o glacial e o pulsante, destacando, no segundo caso, a continuidade de uma história escrita a sangue.
Marcos Caruso em O Escândalo Philippe Dussaert, montagem de Fernando Philbert em cartaz no Teatro Maison de France (Foto: Paula Kossatz)
Mesmo que pince um caso específico – o de um suposto pintor (o Philippe Dussaert do título) que se notabilizou na reprodução de paisagens de fundo de telas consagradas – e que tome cuidado de, em dado momento do texto, ressaltar que não tem a intenção de abordar a arte contemporânea como um todo, Jacques Mougenot realça questões abrangentes sobre a obra de arte nos dias de hoje (quem atribui o valor, como estabelecer critérios para legitimar ou não o trabalho).
O dramaturgo, quase inevitavelmente, traz à tona uma recorrente polêmica sobre arte abstrata, muitas vezes tratada como golpe por não fornecer uma decodificação imediata dos signos no habitual intuito de estimular a livre apropriação do espectador. Esse incentivo à autoria, porém, por mais saudável, não garante a qualidade da obra. E há trabalhos que ambicionam desestabilizar ou surpreender o espectador e se reduzem a um mero efeito de choque, ocasionalmente impulsionados pelo jogo de marketing, pelo interesse em criar e promover celebridades. No texto de Mougenot, o mencionado Dussaert desponta como símbolo de determinadas distorções. Não é, portanto, um caso isolado. O escândalo Philippe Dussaert parece associar, por meio de constante ironia, iniciativas singulares a um vazio artístico. Essa articulação tende a gerar uma valorização do oposto: de uma noção de arte mais calcada em bases concretas, palpáveis, menos pautada pelo que se costuma chamar de invencionices.
É preciso incluir Marcos Caruso, ator do monólogo dirigido por Fernando Philbert, nesse debate. Artista que transita por diversas funções – ator, dramaturgo, diretor –, Caruso construiu sólida trajetória dentro do teatro de mercado (termo, aqui, desvinculado de juízo de valor). Como autor assinou sucessos de bilheteria, em voos solos, a exemplo da peça recordista de público Trair e coçar é só começar, e em parceria com Jandira Martini, em textos como Porca miséria e Sua excelência, o candidato. Caruso é representante genuíno da comédia de costumes, gênero que, iniciado com Martins Pena, atravessa o teatro brasileiro. Menos frequente como diretor, firmou bem-sucedido percurso como ator, seja no teatro, seja na televisão. Apesar do texto de Mougenot, de origem francesa, não ter evidentemente sido escrito para Caruso, há uma conexão entre a peça – que, de certo modo, defende uma perspectiva de arte mais tradicional – e um artista inserido no mercado.
A encenação é complementada, ao final, com uma mensagem tradicional (qualquer mensagem, por si só, pode ser considerada como um mecanismo tradicional na relação com o público), um destaque a um sempre referido paradoxo do contato ator/espectador no teatro: o ator como aquele que mente com o máximo de verdade, convencendo a plateia de informações fictícias e estados emocionais que soam como próprios do intérprete, mas pertencem ao personagem. Vale lembrar que Bosco Brasil estruturou sua peça Novas diretrizes em tempos de paz sobre a capacidade do ator, por meio das suas ferramentas interpretativas e de sua cultura teatral (evoca o texto A vida é sonho, de Calderón de la Barca), fazer o espectador acreditar que está diante de um relato verídico e se emocionar. No texto de Brasil, um dos personagens assumia o lugar de ator e o outro, o de espectador. No de Mougenot, o ator solitário convence o público de que está relatando uma história que, de fato, aconteceu.
Para tanto, Caruso busca um registro de atuação invisível. O ator recebe os espectadores na entrada do teatro e, quando sobe ao palco para o espetáculo efetivamente começar, mantém o tom de conversa direta com a plateia, a quebra da quarta parede, a fala nada impostada, um estar em cena à-vontade que sustenta ao longo da sessão. O ator dá a impressão de se expressar em seu próprio nome, mas interpreta um personagem que explana, diante da plateia, o caso Philippe Dussaert. Ao público também é destinado um papel: o de espectador de uma palestra coloquial sobre Dussaert. Esse registro contrasta apenas nos breves instantes em que Caruso compõe uma suposta crítica de arte. Centrada no ator, a montagem demonstra investimento na economia de elementos cênicos, mas sem perder de vista a preocupação com uma dada concepção, a julgar pela escultura presente na cenografia de Natalia Lana e pela iluminação, ainda que vez por outra excessiva, de Vilmar Olos.
O escândalo Philippe Dussaert resgata um amplo debate – contido em Arte, peça de Yasmina Reza –, sem, contudo, levá-lo a avançar para além do lugar-comum, em que pese a segurança do autor no desenvolvimento de sua proposta dramatúrgica. Para avançar na discussão talvez seja necessário perceber que cabe analisar as obras separadamente e ceder às tentações de agrupá-las em blocos e de seguir apostando em contrapontos apressados – entre o abstrato e o concreto, o experimental e o mercado –, como se fosse preciso tomar um partido. Mas o espetáculo, bastante fluente, não tende a provocar incômodo no espectador. Se por um lado se pode fazer restrição à ausência de atrito que o universo temático deveria suscitar, por outro é um prazer assistir a Marcos Caruso em pleno domínio dos seus recursos interpretativos.
Grace Passô em Vaga Carne, trabalho contemplado em quatro categorias (Foto: Lucas Ávila)
Gritos, encenação que dá continuidade à pesquisa de linguagem da Cia. Dos à Deux, e Vaga Carne, texto e atuação de Grace Passô, lideram as indicações do Prêmio Cesgranrio referentes ao segundo semestre de 2016. Mencionado em três categorias, o espetáculo 5 X Comédia, assinado por Hamilton Vaz Pereira e Monique Gardenberg. Com duas indicações, Os Cadernos de Kindzu, da Cia. Amok, Amor em 2 Atos, dirigido por Luiz Felipe Reis, Cabeça – Um Documentário Cênico, assinado por Felipe Vidal, A Vida passou por Aqui, peça de Claudia Mauro, também presente em cena, Boa Noite, Professor, de Lionel Fischer e Julia Stockler, e Imagina esse Palco que se Mexe, montagem de Moacir Chaves. Também foram lembrados com uma indicação O Escândalo Philippe Dussaert, Ordinary Days, Demônios, A Invenção do Amor, Tran_se e Céus.
Indicados:
Espetáculo – Os Cadernos de Kindzu, Gritos, Vaga Carne
Direção – Ana Teixeira e Stephane Brodt (Os Cadernos de Kindzu), André Curti e Artur Luanda Ribeiro (Gritos), Luiz Felipe Reis (Amor em 2 Atos)
Autor – Felipe Vidal (Cabeça – Um Documentário Cênico), Grace Passô (Vaga Carne), Claudia Mauro (A Vida passou por Aqui)
Atriz – Claudia Mauro (A Vida passou por Aqui), Fabiula Nascimento (5 X Comédia), Grace Passô (Vaga Carne)
Ator – Bruno Mazzeo (5 X Comédia), Marcos Caruso (O Escândalo Philippe Dussaert), Otto Jr. (Amor em 2 Atos)
Atriz em Musical – Vilma Melo (Chica da Silva, o Musical)
Ator em Musical – Hugo Bonemer (Ordinary Days)
Cenografia – André Curti e Artur Luanda Ribeiro (Gritos), Bel LoboeBruce Gomlevski (Demônios), José Dias (Boa Noite, Professor)
Figurino – Cassio Brasil (5 X Comédia), Marcelo Olinto (A Invenção do Amor), Paula Stroher (Tran_se)
Iluminação – Artur Luanda Ribeiro e Hugo Mercier (Gritos), Nadja Naira (Vaga Carne), Paulo César Medeiros (Imagina esse Palco que se Mexe)
Direção Musical – Alexandre Elias (Chica da Silva, o Musical), Luciano Moreira e Felipe Vidal (Cabeça – Um Documentário Cênico)
Categoria Especial – Eduardo Rieche (pela autoria do livro Yara Amaral – A Operária do Teatro), Grupo Nós do Morro (pelos 30 anos de atividade), Tato Taborda (pelas criações musicais dos espetáculos Boa Noite, Professor, Céus e Imagina esse Palco que se Mexe)