Espaços de Almodóvar

Tilda Swinton no curta-metragem A Voz Humana (Foto: Divulgação)

Pedro Almodóvar se apropria de A Voz Humana, monólogo de Jean Cocteau, num curta-metragem atravessado pela oscilação entre o apego ao realismo e a quebra desse registro. Essa característica é evidenciada na configuração espacial. O apartamento da personagem, concebido de maneira minuciosa, obedece à gramática do realismo, tendência levemente suavizada pelo acúmulo de cores fortes (o azul e o vermelho, como de hábito, sobressaem, mas o verde também ganha destaque). O sentido de apresentar uma locação detalhista, munida de todos os móveis e objetos comuns a uma casa, estaria em gerar identificação no espectador, que se projetaria imaginariamente nos ambientes descortinados na tela. No entanto, essa locação não surge como espaço absoluto. É, ao contrário, mostrada como uma espécie de ilha dentro de um grande galpão. Por isso, o apartamento não desponta como um espaço “real”, encerrado em si, mas como construção cenográfica, como estrutura armada, sem disfarces. Ao ser confrontado com a exposição do artifício, o público deixa de se relacionar com o espaço de modo ilusionista.

Há uma oposição entre o apartamento repleto de tonalidades quentes, perfeitamente arrumado – apesar de poluído, em certa medida, por ações suscitadas pelo descontrole da personagem –, e o galpão inóspito, aparentemente abandonado. Tilda Swinton transita entre esses espaços destoantes, entre dentro e fora do apartamento (mas lembrando que o fora do apartamento significa estar dentro de outro espaço, o do galpão), encarnando uma personagem mergulhada na dor do término de um relacionamento com um homem com quem conversa ao telefone, em ligação bastante acidentada. A atriz não se descola da personagem, ainda que esta eventualmente se distancie de circunstâncias que cria, a exemplo da passagem em que contempla o incêndio que provocou. A saída para a rua marca o rompimento com espacialidades confinadas, algo que contrasta com a temática da escravidão amorosa. E o fogo que impera nos momentos finais é uma imagem-síntese da desestabilização decorrente do sofrimento causado pelo luto.

O fio do telefone, elemento simbólico – o único que parece mantê-la conectada ao homem de quem depende emocionalmente (“Eu estou com o fio em volta do meu pescoço. Estou com a sua voz em volta do meu pescoço”) –, é substituído por tecnologia do século XXI. Mas, mesmo com as alterações propostas nesse filme exibido no Festival e Veneza e na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, Almodóvar demonstra fidelidade tanto aos princípios de seu cinema quanto à dramaturgia de Cocteau.  

Onde ver: Now, Amazon Prime, Vivo Play, Google Play e YouTube Filmes.