Momento de reencontros

Marcelo Drummond e Guilherme Calzavara em Esperando Godot (Foto: Jennifer Glass)

José Celso Martinez Corrêa apresenta dois trabalhos no terreno do audiovisual: Esperando Godot, em que ocupa o lugar de encenador, função dividida com Monique Gardenberg e que vem exercendo primordialmente no teatro e de modo pontual no cinema, a exemplo de 25 (1975), realizado no período de seu exílio, e O Rei da Vela (1982), dirigido com Noilton Nunes; e Fédro, em que surge diante das câmeras ao lado de Reynaldo Gianecchini, numa posição, de ator, também frequente em sua carreira, considerando sua constante presença em cena nos espetáculos que assina.

Esperando Godot, peça de Samuel Beckett, é particularmente próxima de Zé Celso, que a encenou em 2001, em montagem produzida por Gardenberg (à frente da Dueto Produções). Além disso, o texto marcou a última aparição de Cacilda Becker, no espetáculo de 1969 dirigido por Flavio Rangel. No intervalo entre os atos da peça, numa das apresentações, Cacilda sofreu um derrame e foi levada para o hospital, onde permaneceu pouco menos de 40 dias em coma antes de morrer. Zé Celso escreveu e montou textos sobre Cacilda como forma de homenageá-la.

Zé Celso e Gardenberg filmam Esperando Godot no palco-passarela do Teatro Oficina, espaço amplamente aproveitado, e propõem uma espécie de paradoxo em relação ao texto original: se na peça de Beckett, os protagonistas, Vladimir e Estragon, são reféns da espera por alguém (Godot) que nunca chega – situação que sugere estagnação –, na encenação/filmagem eles têm a possibilidade de se locomoverem livremente – as portas do teatro, tanto na parte da frente quanto na de trás, e as telas da parede envidraçada ficam abertas.

Essa abertura para o espaço externo parece um modo de sublinhar que, na prática, Vladimir e Estragon podem ir embora. A exibição, ao fundo, da movimentação da São Paulo de hoje contrasta, em certa medida, com a estrutura circular, confinada, de uma peça em que no segundo ato os mesmos personagens retornam para continuar esperando Godot, ainda que não consigam se lembrar exatamente de estarem desde antes envolvidos nessa tarefa.

O destaque à configuração atual do Oficina realça a conexão com o aqui/agora buscada pelos diretores. Esse elemento se manifesta em referências ao momento presente – a chegada de Estragon usando máscara, a entrada de Lucky com mochila de iFood, a associação entre o autoritarismo de Pozzo e o comportamento do presidente Jair Bolsonaro. A aproximação com a contemporaneidade também sobressai na tradução coloquial (de Catherine Hirsch e Verônica Tamaoki), que dessacraliza o texto de Beckett.

Mas esse Esperando Godot não se restringe ao instante imediato. Ao longo da apresentação/projeção, os diretores investem numa conjugação entre passado e presente. A própria valorização da arquitetura peculiar remete ao projeto concebido por Lina Bo Bardi e Edson Elito nos anos 1980. A caracterização de Vladimir e Estragon como maltrapilhos – vestindo roupas rasgadas, rotas, esfarrapadas – traz à tona um elo com a realidade sintetizado numa fala de Vladimir – “Ninguém reconhece mesmo a gente” – que pode ser interpretada como uma alusão aos invisibilizados da sociedade, aos relegados ao lugar de pária, extrato abraçado na cena inclusiva do Oficina, em especial nos espetáculos a partir de Os Sertões, de Euclides da Cunha.

Outras citações atravessam Esperando Godot: ao edifício Martinelli, construção histórica e emblemática de São Paulo, a comediantes recentes (Paulo Gustavo) e lendários (Grande Otelo), a uma peça célebre (Longa Jornada Noite Adentro, de Eugene O’Neill, autor que influenciou o dramaturgo Nelson Rodrigues, que prestou inestimável contribuição ao teatro brasileiro, também lembrado).

Além das articulações entre espaço interno/externo e entre passado/presente, Zé Celso e Gardenberg fundem realidade e artifício. Sugerem vínculos com o panorama político e social ao mesmo tempo em que potencializam o postiço por meio da peruca de Lucky, do uso que Pozzo faz do colírio para produção de lágrimas e da decisão de expor a realização do trabalho através da imagem da equipe de filmagem no intervalo entre os atos da peça.

Esse jogo de contrários se estende ao campo da atuação. Guilherme Calzavara (destaque do elenco) e Marcelo Drummond, intérpretes de Vladimir e Estragon, enveredam por registro menos empostado, mais próximo da concretude da palavra, distante do tradicional virtuosismo do clownesco contido nos personagens. Pascoal da Conceição e Danilo Grangheia apresentam atuações mais expandidas, nas quais as manifestações físicas são mais explicitadas, seja através de uma voz de comando, seja da evidenciação de fluidos corpóreos. E o menino Raphael Moreira é o mensageiro, acentuando o contraponto entre a força catártica de Exu e a padronização das respostas em inglês.

José Celso Martinez Corrêa e Reynaldo Gianecchini em Fédro (Foto: Divulgação)

Em Fédro, Zé Celso, que não está atrás das câmeras nesse filme dirigido por Marcelo Sebá, também recorre a um texto – o diálogo, escrito por Platão, entre Sócrates e o jovem Fédro. Mas não há, como em Esperando Godot, atores interpretando personagens da ficção – por mais que, nesse filme, a separação entre os atores e as figuras de Beckett não seja rígida. Aqui, Zé Celso e Reynaldo Gianecchini surgem como eles mesmos num ansiado reencontro. Há 20 anos Gianecchini participou da montagem de Boca de Ouro, peça de Nelson Rodrigues, no Teatro Oficina, fase imediatamente anterior ao seu ingresso na televisão. Durante todo esse tempo não voltou ao Oficina e nem reviu Zé Celso.

Zé Celso e Gianecchini interagem através de uma leitura de Fédro. Não dependem, porém, por completo do texto, que funciona como pouco mais que um gatilho para falarem sobre autoexposição, corpo e passagem do tempo. Ambos afirmam que chegaram ao dia da filmagem sem qualquer planejamento prévio, mas claro que houve uma concepção anterior a esse momento, tanto em relação à escolha do texto de Platão quanto à preparação do espaço – um apartamento – onde os dois se reencontram.

Esse reencontro é marcado, até certo ponto, por uma dificuldade de ambos em estabelecer sintonia. Fica a sensação de que os dois, apesar de reunidos num único espaço, pertencem a planos distintos. Zé Celso externa a sua libertária visão de mundo por meio de um discurso que parece estar sendo dito a um interlocutor indefinido. Portador de uma fala reconhecível pelos que têm contato com o seu trabalho e acompanham a sua trajetória, Zé Celso dá a impressão de que poderia estar dizendo aquelas palavras a qualquer pessoa e não a um indivíduo específico. Inevitavelmente influenciado pelos dias de hoje, não se debruça, porém, sobre um determinado contexto; ao contrário, transcende tempos históricos. Já Gianecchini faz observações decorrentes de percepções de agora. Procura se colocar em estado de disponibilidade diante de Zé Celso, mas revela um grau de desconforto, uma presença algo ameaçada, defendida. O texto de Platão é estruturado como diálogo; essa dinâmica, contudo, é justamente o que não se estabelece entre Zé Celso e Gianecchini.

No entanto, aos poucos, um elo se firma entre ambos. Constantemente Zé Celso assinala que Gianecchini precisa relaxar (“você é muito amarrado”, “você ainda está muito tenso”). À medida que a projeção avança, o veterano diretor radiografa, com apuro crescente, o estado, principalmente corporal, do ator. Afirma que Gianecchini teme a aproximação física, a entrega. Zé Celso, numa conversa cada vez mais centrada na importância da autoexposição do indivíduo, seja ele artista ou não, defende a nudez do corpo, mas dimensiona o autodesnudamento como instância de revelação para além de um despir literal. “Vou ter que olhar nos seus olhos nus”, diz, em dado momento, para Gianecchini, que adquire um grau de espontaneidade na interação com Zé Celso.

O corpo impera em Fédro. Essa percepção vale tanto para as passagens mais expressivas – quando os corpos contrastantes de Zé Celso e Gianecchini se tocam suavemente na cama – quanto para a evocação do violentíssimo assassinato de Luís Antonio Martinez Corrêa, irmão de Zé Celso, em 1987. A articulação entre corpo e morte também vem à tona nas breves lembranças do câncer enfrentado por Gianecchini e da tortura sofrida por Zé Celso durante a ditadura.

Fédro coloca o espectador diante da vulnerabilidade do artista – estado bem mais visível em Gianecchini do que em Zé Celso – que tende a aumentar quando não existe personagem no sentido convencional do termo. Numa proposta como a desse filme não há como se esconder atrás de uma identidade fictícia. Os atores representam, na medida em que estão diante de uma câmera, só que a si mesmos. É como se as personagens continuassem existindo, mas como biombos transparentes que não permitem ocultar, pelo menos não significativamente, os atores. A atmosfera de intimidade do encontro dos dois no apartamento é, inclusive, quebrada com frequência pela menção à profissionais da equipe (que ajustam microfones e a iluminação) e pela imagem do cinegrafista no reflexo da janela.

Há a intenção de frisar que eles não estão sozinhos, que aquela conversa personalizada serve a um trabalho. A construção do filme transparece na montagem de Alessandro Danielli, que mescla vários instantes do encontro: ambos jantando, conversando, ensaiando, na cama e fora dela. Mas a noção de tempo não se restringe a esse reencontro ocorrido numa noite de junho de 2019, em São Paulo. Zé Celso traz à tona outras épocas – sua sempre referida encenação de O Rei da Vela, em 1967, em que apresentou o texto, até então inédito, de Oswald de Andrade, promovendo uma guinada no percurso do Teatro Oficina, e espetáculos posteriores, casos de Mistérios Gozosos e As Bacantes. Há, nesse sentido, uma condensação de tempos nesse reencontro no apartamento, incluindo ainda um apontamento para o que, porventura, possa vir a acontecer. “Hoje começa o caminho de uma futura peça chamada Fédro”, sugere Zé Celso.

O acúmulo de tempos contido, em especial, nas referências, a relevância destinada aos espaços, a não ocultação das equipes de filmagens e a realização de reencontros afetivos para Zé Celso (com um texto que já montou e um ator que já dirigiu) são alguns dos elementos comuns aos dois trabalhos. E se Esperando Godot bate na tela como uma apropriação livre, mas sem explodir com a sua construção estrutural, da peça de Samuel Beckett, Fédro pode fazer o público lembrar, ainda que longinquamente, de Anton Tchekhov. Um autor que abordou a falta de interação entre personagens reunidos num mesmo plano histórico e geográfico. E que concebeu personagens que extravasam as bordas das peças não só ao mostrá-los com vidas que extrapolam o fragmento de tempo descortinado diante do leitor/espectador como ao destacá-los realizando projeções para o futuro, quando não estarão mais vivos.  

Onde ver:

Esperando Godot – Plataforma Sympla Play

Fédro – Plataforma Star +