Histórico e contemporâneo

A dramaturgia de As Cangaceiras – Guerreiras do Sertão, assinada por Newton Moreno, oscila entre o derramamento do melodrama e a concentração da tragédia. Como no melodrama, as personagens manifestam emoções pungentes em jornadas marcadas pelo sofrimento. São mães sacrificadas – uma em busca do filho de quem foi abruptamente separada após o parto, outra na determinação em defender a filha do perigo ao redor e mais uma decidida a vingar a violência do incesto. Os homens surgem, na maioria das vezes, como algozes, como figuras ameaçadoras que, apesar de ocasionalmente dotadas de uma parcela de humanidade, não hesitam em subjugar as mulheres em atos comandados por instintos selvagens. Para completar, a filiação ao melodrama se traduz na súbita revelação de laços familiares entre opressor e oprimido. Já em relação à tragédia, o acontecimento fundamental nas vidas das personagens ocorreu previamente – a separação do filho, o permanente abuso dos homens – e o espectador é informado dos fatos. Não há uma curvatura dramática tradicional, uma apresentação das situações rumo ao clímax, com exceção da cena do reencontro de uma das personagens com o filho, ao final do espetáculo.

Em cartaz até domingo no Teatro Riachuelo, a montagem de As Cangaceiras, dirigida por Sergio Módena, transita por mais gêneros: a comédia, no modo como as personagens – às vezes criadas em registro histriônico – se expressam no cotidiano, ainda que sempre confrontadas com uma dura realidade, e o musical, que atravessa a encenação pontuando tanto as passagens mais extremadas quanto as de certo respiro pela via do humor (direção musical de Fernanda Maia e canções originais de Maia e Moreno). A habilidade em percorrer gêneros variados se reflete no percurso de Newton Moreno, que experimentou a comédia (por meio do singular As Centenárias e do comunicativo Maria do Caritó) e o drama (o estado de perplexidade flagrante em Agreste, a radicalidade do desejo em A Refeição).

Além da diversidade de gêneros, As Cangaceiras traz momentos de quebra, nos quais os personagens falam de frente para a plateia, sugerindo influência brechtiana. A referência a Mãe Coragem e seus Filhos vem à tona, ao longe, principalmente na imagem da mulher que precisa continuar gritando, mesmo sem ter como emitir som. Nesses instantes de quebra se estabelece, de maneira mais explícita, a conexão entre o período histórico do texto e os dias de hoje. Newton Moreno se volta ao passado para sublinhar a luta das mulheres, tiranizadas pelos homens. O cangaço é um símbolo do tratamento inferiorizado relegado a elas, mas o discurso da peça transcende esse contexto. Foi concebido para reverberar no público contemporâneo. Esse movimento do particular para o geral fica evidente num texto que realça as trajetórias de personagens específicas e, por outro lado, voa acima de qualquer individualização ao estimular um elo entre as mulheres de antes e de agora em suas justas reivindicações por liberdade. Moreno também é fiel ao mundo nordestino – como se pode perceber na cenografia (de Marcio Medina) que, sem aderir à reprodução realista, sintetiza, através dos nichos dispostos no palco, a paisagem árida do sertão, e nos figurinos estilizados (de Fabio Namatame), quase todos seguindo um padrão cromático, mas nem por isso destituídos de variações – e, sem abrir mão desse vínculo, ultrapassa fronteiras na abordagem de questões universais.

Em As Cangaceiras, o domínio do autor se soma ao do diretor. Sergio Módena conduz a encenação num fluxo ininterrupto e conta com interpretações de um elenco afinado. Entre os integrantes, Amanda Acosta empresta, à mulher em busca do filho, uma voltagem abertamente emocional, mas sem incorrer em excessos, Luciana Lyra projeta de forma expressiva o descontrole da viúva, Milton Filho envereda por divertida linha caricatural e Vera Zimmermann – destaque do conjunto na primeira metade do espetáculo, quando sua personagem tem mais espaço – imprime contundência à mãe, firme na proteção da filha. Cabe apenas fazer restrição à falta de clareza com que muitas falas ditas pelos atores chegam aos espectadores.