Debora Duboc em A Valsa de Lili, encenação em cartaz até o próximo domingo no Teatro III do CCBB
Na base do projeto de A Valsa de Lili reside um evidente desafio: apresentar um monólogo no qual a personagem/atriz permanece praticamente imóvel. Essa é a situação de Eliana Zagui, que, com a maior parte do corpo imobilizado devido a uma poliomielite mal diagnosticada, vive confinada há décadas numa cama de UTI do Hospital das Clínicas, em São Paulo. Eliana contou sua trajetória no livro Pulmão de Aço, que norteou a criação dramatúrgica de Aimar Labaki.
A Lili que desponta no palco tem plena consciência de sua impotência frente a uma realidade trágica que a prende a uma cama de hospital e expressa revolta diante desse estado irremediável. Não se deixa, porém, levar por uma visão fatalista de mundo. A história traz à memória do espectador outras jornadas de superação, o que relativiza a originalidade da abordagem, mas Lili adquire individualidade própria.
Além disso, a concepção de Lili como personagem algo solar diante de sua condição física e a contenção de movimentos na interpretação da atriz Debora Duboc, determinada pela considerável interdição corporal da personagem, remetem longinquamente à Winnie, de Dias Felizes, de Samuel Beckett, que se torna cada vez mais otimista à medida que vai sendo tragada pela terra.
Na montagem dirigida por Debora Dubois, em cartaz no Teatro III do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), o ambiente hospitalar é evocado através de luz fria que ganha cor com o aumento da intensidade emocional do depoimento de Lili. Ressignificada, a iluminação de Aline Santini simboliza, por meio de focos espalhados pelo espaço, os amigos que moram no hospital com Lili, formando sua família substituta.
A atriz Debora Duboc surge sentada numa cama disposta verticalmente (cenário e Márcio Vinicius). É como fica do início ao fim do espetáculo relatando ao público o percurso de Lili/Eliana. Essa restrição não inviabiliza o trabalho físico; estimula, isto sim, possibilidades artísticas que nascem da limitação, em especial no que se refere à variação de diferentes modulações vocais.
Em dados instantes, Debora Duboc destaca trechos de texto por meio de um tom de voz contundente, procedimento que sugere influência brechtiana. Sem se desconectar da personagem, a atriz realça uma indignada postura cidadã que tende a suscitar identificação com o espectador, aproximando-o ainda mais da cena e inserindo Lili no dramático panorama social brasileiro.
Jacksons do Pandeiro, vencedor na categoria Espetáculo Inédito ao Vivo, prêmio dividido com Tudo que coube numa VHS (Foto: Renato Mangolin)
A pandemia do coronavírus gerou mudanças abruptas no mundo. No caso do teatro, os efeitos foram radicais. Pelo menos num primeiro momento, quando a atividade foi interrompida. Os espaços fecharam e os artistas se viram sem a possibilidade de exercer o próprio ofício. Não demorou muito, porém, para que se organizassem em torno de apresentações virtuais. A alternativa suscitou algum questionamento em relação à validade dessa prática como teatro, uma vez que não havia como preservar determinados princípios – como o acontecimento presencial, ao vivo, entre atores e espectadores. Mas o fato é que, manifestação artística que precisa de poucos recursos, o teatro (ou o teatro viável em tempos de pandemia) ressurgiu graças ao aparato tecnológico.
Acompanhando esse novo modo de funcionamento, o Prêmio APTR (Associação dos Produtores de Teatro) seguiu adiante em formato diferenciado. Ao invés das tradicionais categorias, o prêmio, nessa sua 15ª edição, foi norteado por outras, sintonizadas com o aqui/agora: espetáculo inédito ao vivo, espetáculo inédito editado, espetáculo adaptado ao vivo, espetáculo adaptado editado. Dois quesitos foram mantidos – o Troféu Manoela Pinto Guimarães, que, destinado a jovens artistas que vêm se destacando na cena, começou ano passado, e o Prêmio Especial. Houve mais uma alteração significativa: o prêmio adquiriu alcance nacional, passando a contemplar trabalhos de todas as partes do Brasil, característica também ligada ao contexto atual, tendo em vista a oportunidade de atingir um público mais abrangente, na medida em que não circunscrito a cidade onde o espectador se encontra.
A diversidade, portanto, sobressaiu na premiação, ocorrida na noite da última quinta-feira, em cerimônia dirigida por Fernando Libonati e apresentada por Renata Sorrah e Marco Nanini. O júri – formado por Bia Radunsky, Carmen Luz, Daniel Schenker, Lionel Fischer, Macksen Luiz, Tania Brandão e Wagner Corrêa, além do colegiado da APTR – premiou trabalhos atravessados por propostas de linguagem distintas e realizados em diferentes regiões do país. Na categoria espetáculo inédito ao vivo venceram Jacksons do Pandeiro, musical, dirigido por Duda Maia, da Cia. Barca dos Corações Partidos (RJ), e Tudo que coube numa VHS, projeto sensorial da Cia. Magiluth (PE). O melhor espetáculo inédito editado foi Sigo de Volta (SP), conduzido por Leticia Cannavale. No quesito espetáculo adaptado ao vivo ganhou Contrações (SP), encenação de Grace Passô que incorporou a gramática tecnológica. Habite-me: teatro de máscaras, dança e bonecos (RS), dirigido por Paulo Balardim, e Processo Julius Caesar (RJ), interface cinema/teatro, a cargo de Rafael Gomes e com os integrantes da Cia. dos Atores, dividiram o prêmio de espetáculo adaptado editado. O Troféu Manuela Pinto Guimarães foi para o elenco de Negra Palavra Solano Trindade e o Prêmio Especial, a Fabio Porchat pelas iniciativas em prol do teatro.
A cerimônia foi marcada por discursos contundentes, tanto de Eduardo Barata, presidente da APTR, quanto dos artistas vencedores, a respeito da situação cada vez mais dramática enfrentada pelos artistas na atual conjuntura do país. A emoção imperou ainda nas oito homenagens prestadas a artistas e grupos emblemáticos do panorama teatral – às atrizes Léa Garcia e Camilla Amado, ao diretor José Celso Martinez Corrêa, ao diretor regional do Sesc/SP Danilo Santos de Miranda, às companhias Clowns de Shakespeare, Marginal e Bando de Teatro Olodum e ao coletivo As Travestidas – e na lembrança aos profissionais que morreram no último ano, muitos vitimados pela covid. Ao final, Renata Sorrah e Marco Nanini evocaram trechos de textos que interpretaram nos palcos – proposta do roteiro assinado por Daniela Pereira de Carvalho –, como A Gaivota, de Anton Tchekhov (Sorrah participou da montagem dirigida pelo argentino Jorge Lavelli), e Um Circo de Rins e Fígado (Nanini protagonizou a encenação de Gerald Thomas).
Christiane Tricerri em Sal (Foto: Isadora Tricerri)
A jornada de Ella, conectada a um homem com quem se relacionou e que desapareceu, sugere uma espécie de paradoxo. Se por um lado a determinação em reconstituir aquilo que viveu com ele evidencia uma estagnação, uma dificuldade ou recusa em seguir em frente, por outro a personagem se mantém, de certa forma, em ação ao insistir em seu objetivo, ao verbalizá-lo incessantemente. Uma inércia ativa simbolizada por imagens que atravessam esse trabalho dirigido e interpretado por Christiane Tricerri a partir de dramaturgia de Eugenio Barba escorada no romance de Antonio Tabucchi (Si sta facendo sempre più tardi).
Ella se encontra confinada no espaço limitado de uma banheira, geografia que supostamente contrasta com os frequentes registros de mar. Mas o mar não é mostrado em sua imensidão, e sim enquadrado na tela, como se pudesse ser retido, esforço semelhante ao da personagem, que procura preservar intacto um passado luminoso. Em todo caso, a água do mar permanece em movimento, mesmo que circunscrita às bordas da imagem.
O passado louvado por Ella é, pelo menos em parte, assumido como uma construção de pensamento (“a viagem que não fizemos, mas que imaginamos em detalhes”, afirma). A personagem percebe que sua memória não diz respeito necessariamente a acontecimentos reais. Ao projetar experiências que não ocorreram como se fossem verdadeiras, Ella radicaliza a inevitável ficcionalização do real. O contraponto entre o autêntico e o fabricado surge sintetizado na discrepância entre o azul opaco, mas natural, da água do mar e a tonalidade intensa, mas artificial, do líquido na banheira.
A exposição das lembranças (concretas ou não) é potencializada através do recurso da voz em off, que também remete à evocação do passado. Ella transita pelo terreno movediço, enganoso, da memória, o que não a impede de se revelar diante do espectador, impressão realçada pela transparência dos figurinos. O corpo de Christiane Tricerri é destacado ainda por meio de closes em fragmentos (o elo com o homem começou pelo olhar, relata Ella em dado instante).
Sal traz à tona a eternização da ausência, a impossibilidade de preenchê-la, em escala significativa, através de presenças ilusoriamente substitutas. Esses conteúdos ganham leitura estética personalizada, distante da apresentada no solo da atriz Roberta Carreri – cujo breve depoimento, inclusive, abre a sessão – dirigido por Eugenio Barba. Seja como for, a encenação de Barba/Carreri parece ter norteado o percurso criativo de Tricerri, que fala pausadamente o texto, opção que adquire efeito algo hipnótico.
Onde ver: Reserve seu ingresso na plataforma da Sympla (www.sympla.com.br). Até 12/8.
Camilla Amado em O Homem Vivo (Foto: Luis Paulo Nenen)
“Personagem é para evitar constrangimento”, dizia Camilla Amado. Por meio dessa constatação, frisava que o ator não realiza o seu trabalho impunemente, na medida em que utiliza seu material pessoal na construção de cada personagem que interpreta. A habilidade de expressar verdades com surpreendente sabedoria era uma das características da atriz, que morreu no último domingo. Sempre determinada a caminhar na contramão de uma postura de diva, Camilla fazia questão de demolir formalidades na maneira como se relacionava com artistas e anônimos.
A reverência, em todo caso, é justa. A excelência que alcançou nas montagens de Um Equilíbrio Delicado, peça de Edward Albee, e Troia, inspirada na tragédia de Eurípedes, ambas dirigidas por Eduardo Wotzik, é suficiente para dimensionar sua importância como atriz. Sua trajetória, claro, não se resume ao brilho de trabalhos pontuais.
A personalidade afetuosa e a qualidade profissional, méritos estendidos às funções de professora e preparadora de atores que exerceu no decorrer do tempo, fizeram com que estabelecesse parcerias duradouras. Dividiu a cena com Luis de Lima em Espetáculo Ionesco, A Lição, novamente Ionesco, e em Um Equilíbrio Delicado. Foi conduzida e contracenou com Antonio Pedro em diversos espetáculos: Desgraças de uma Criança, de Martins Pena (grande sucesso), A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho, Festa de Sábado, de Braulio Pedroso, Hamlet, de William Shakespeare, e em incursões no universo brechtiano em De Brecht a Stanislaw Ponte Preta e Tá Ruço no Açougue – Um Baixo Brecht, adaptação de A Santa Joana dos Matadouros. Brecht ainda foi revisitado pela atriz em O Homem Vivo, sob a direção de Delson Antunes.
Não há como mencionar todas as ligações artísticas, na direção ou atuação, que incluem, entre outros, Ítalo Rossi (em Momentos, Morre um Coração Vulgar e Um Dia Muito Louco ou Bodas de Fígaro), Nelson Xavier (O Segredo do Velho Mudo, Trivial Simples) e Clarice Niskier (Tá Ruço no Açougue, Um Equilíbrio Delicado, Troia, Yerma, O Lugar Escuro). Através do projeto de As Cadeiras, de Ionesco, retomou recentemente o vínculo com Marco Nanini, ator com quem havia trabalhado em Encontro no Bar, montagem em que Camilla se arriscou na produção, Desgraças de uma Criança e Brasil: Da Censura à Abertura, texto e direção de Jô Soares. E um elo não pode ser esquecido: com a filha, Rafaela Amado, que a dirigiu (juntamente com Mariah Schwartz) em O Jardim Secreto, adaptação de Renata Mizrahi para o livro de Frances Hodgson Burnett. Camilla e Rafaela dividiram a cena na montagem de João Fonseca para Electra, tragédia de Sófocles.
Filha de Gilson Amado, fundador da TVE, e da educadora Henriette, Camilla tangenciou momentos emblemáticos do teatro brasileiro ao substituir Vera Gertel na encenação de José Renato para Eles não usam Black-Tie, de Gianfrancesco Guarnieri, no Teatro de Arena, e Miriam Mehler em Anjo de Pedra, de Tennessee Williams, espetáculo, a cargo de Geraldo Queiroz, do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). E participou de uma nova montagem de Vestido de Noiva, em 1976, assinada por Ziembinski, o mesmo encenador do histórico primeiro espetáculo realizado, em 1943, com o grupo Os Comediantes, a partir da peça de Nelson Rodrigues. A atriz evocou a experiência no documentário inédito Zimba (2021), de Joel Pizzini. O reconhecimento pela carreira relevante foi manifestado por meio do prêmio que recebeu da Associação de Produtores do Rio (APTR).
Camilla também se destacou no cinema e na televisão. Esteve em filmes como O Casamento (1976), transposição de Arnaldo Jabor da obra original de Nelson Rodrigues, e Amélia (2000), de Ana Carolina, centrado na vinda da atriz Sarah Bernhardt ao Brasil. Depois de anos afastada das novelas, tornou-se cada vez mais assídua na TV, marcando presença, por exemplo, na versão de Éramos Seis, exibida na Rede Globo.
Fabiana Gugli em Terra em Trânsito (Foto: Luiz Maximiano)
Encenações apresentadas anteriormente em teatros ganham novo fôlego durante a pandemia, evidenciando esforços em aproveitar a limitação espacial como proposta de linguagem e em dialogar de maneira direta com o contexto dos dias de hoje. É o caso de Terra em Trânsito, trabalho sintético dirigido por Gerald Thomas realizado, há 15 anos, em conjunto com outra montagem, Rainha Mentira, ambas com a atriz Fabiana Gugli.
A personagem de Terra em Trânsito, uma cantora prestes a entrar em cena numa versão de Tristão e Isolda, se encontra confinada num espaço fechado, um camarim, que, a partir de certo instante, descobre estar trancado. As campainhas indicadoras da proximidade do começo do espetáculo são acionadas, mas ninguém a avisa, percebe a sua presença. Há, como se pode notar, uma crescente suspensão do real que culmina com a fala da personagem: “aqui estamos em plena morte”.
O nonsense é potencializado pelo acesso do espectador a essa espécie de bunker como se fosse um voyeur privilegiado. A câmera, por meio do qual a encenação é virtualmente exibida, surge como o olho do público, porta de entrada a um espaço interditado. No início, a cena desponta como imagem embaçada que logo adquire nitidez, como um espelho que se torna cristalino. Mas esse espelho revela uma visualidade que não se traduz como leitura única. A circunstância descortinada em Terra em Trânsito se abre a variadas possibilidades de apropriação.
Há ainda um afastamento da moldura realista com a presença do interlocutor da personagem, um cisne, em concepção de artificialidade devidamente realçada (voz de Marcos Azevedo e manipulação de Isabela Carvalho), e da quebra da “quarta parede”, nos momentos em que ela se aproxima da câmera e “interage” com o público. O cisne chama a personagem pelo nome da atriz, procedimento que borra a fronteira entre realidade e ficção, elemento relevante no teatro de Gerald Thomas, encenador que costuma escrever seus textos para determinados atores, às vezes mantendo os nomes verdadeiros.
A dramaturgia de Thomas é aberta, criada para o palco, inclusiva em relação aos acontecimentos do mundo. À referência sugerida no título – ao filme Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha –, outras se juntam, ligadas ao teatro do próprio encenador (Um Circo de Rins e Fígados, um de seus espetáculos) e a emergenciais fatos recentes (“vidas negras importam”, invasão ao Capitólio) conectados à gestão de Donald Trump. A situação da cantora aprisionada em seu camarim, ao afirmar que “fui esquecida aqui dentro”, evoca a do mordomo Firs no final de O Jardim das Cerejeiras, uma das grandes peças de Anton Tchekhov, autor de mais um texto, O Canto do Cisne, que suscita elo com esse trabalho. São citações que se misturam e se sobrepõem numa encenação que, apesar do diálogo com o aqui/agora, propõe um acúmulo de tempos.
A noção de acúmulo também diz respeito à questão espacial contida em Terra em Trânsito. A personagem está confinada num camarim. Há, porém, breves menções ao espaço externo (gritos, sons de bombardeio). Se o lado de fora se anuncia como perigoso, algo apocalíptico, o de dentro não parece menos ameaçador, considerando que o espaço interno não se restringe à área geográfica delimitada, mas abarca a subjetividade da personagem, assombrada por uma sensação de pesadelo. Desestabilizada, desorientada, perplexa, ela vive à base de comprimidos que fazem com que sua percepção fique cada vez mais alterada. Sua fala soa acidentada, interrompida, descontinuada, como se mudasse de assunto com frequência. Essas quebras dramáticas – sustentadas em fluxo surpreendente na atuação de Fabiana Gugli – apontam para uma mobilidade constante, já existente no título do espetáculo, mesmo que não se saia necessariamente do lugar.
Ao conjugar passado e presente, realidade e ficção, vida e morte, Gerald Thomas insinua um desejo de confecção de uma obra totalizante, datada na expressão de inquietações contemporâneas e, em contrapartida, atemporal ao transcender seu próprio período histórico.
Transmissão gratuita será pela plataforma digital YouTube, com acesso exclusivo pelo link bit.ly/terraemtransito
Eva Wilma na montagem de Azul Resplendor (Foto: João Caldas)
Uma atriz que realizou feitos marcantes no teatro, no cinema e na televisão, que integrou espetáculos politicamente engajados e outros voltados à boa tradição do mercado, que acumulou experiência no terreno da dança, que quase trabalhou com um dos maiores diretores do mundo… Dona de uma trajetória bastante extensa, Eva Wilma morreu no último sábado, aos 87 anos, mas sua contribuição artística atravessará o tempo.
O início da carreira já foi intenso. Aprimorou-se no balé com Maria Olenewa, estreou no cinema em pequena participação em Uma Pulga na Balança (1953), de Luciano Salce, produção da Vera Cruz, e fez parte dos primeiros anos do Teatro de Arena, companhia fundada por José Renato, em encenações como Esta Noite é Nossa, O Demorado Adeus, Judas em Sábado de Aleluia e Uma Mulher e Três Palhaços – a experiência com o balé foi útil nessa montagem.
Estourou na televisão em Alô, Doçura, série da TV Tupi que permaneceu dez anos no ar, ao lado do primeiro marido, John Herbert. O programa surgiu a partir de um convite de Cassiano Gabus Mendes, profissional que revolucionou a TV e um dos seus maiores parceiros artísticos ao longo do tempo, tendo em vista sua constância em novelas de autoria dele, como Plumas & Paetês, Elas por Elas, Que Rei sou eu? e O Mapa da Mina.
No início da década de 60, outro vínculo determinante em seu percurso: com o encenador Antunes Filho. Foi dirigida por ele em Sem Entrada, Sem mais Nada, A Megera Domada (substituindo Irina Grecco) – montagens do Pequeno Teatro de Comédia –, Black-Out – peça em que recebeu elogios por sua minuciosa interpretação de uma personagem cega – e Esperando Godot – em elenco inteiramente feminino, no qual dividiu o protagonismo com Lilian Lemmertz. A atriz também foi conduzida por encenadores particularmente representativos do começo do teatro moderno no Brasil, como Ziembinski (em O Santo Inquérito), Adolfo Celi (em Boeing-Boeing) e Gianni Ratto (em Desencontros Clandestinos).
Eva Wilma demonstrou perfil combativo durante o período mais conturbado da ditadura, a julgar por sua presença em iniciativas de protesto contra o autoritarismo em vigor e em montagens como Ato sem Perdão, adaptação de Antígona, tragédia de Sófocles, com direção de José Renato. Participou ainda do movimento pela Anistia. E evocou, em obras futuras, os duros anos do regime militar, a exemplo de suas atuações no filme Feliz Ano Velho (1987), versão de Roberto Gervitz para o livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, e na novela Roda de Fogo, de Lauro Cesar Muniz.
Eva Wilma e Nicette Bruno em O que terá acontecido a Baby Jane? (Foto: Marcos Macedo)
Por pouco não ingressou em Hollywood para trabalhar com Alfred Hitchcock. Passou por um processo de seleção em Los Angeles para um papel em Topázio (1969), mas as filmagens foram adiadas e o cineasta acabou escolhendo outra atriz. Não foi, de qualquer modo, a única jornada em terra estrangeira, a julgar pela contracena, tempos depois, com Eunice Muñoz, em Portugal, em Madame, espetáculo apresentado no Brasil.
Apesar de não ter concretizado o desejo de atuar na produção de Hitchcock, o cinema não ficou esquecido em sua trajetória, retratada em livro de Edla Van Steen. Afinal, integrou os elencos de filmes de diretores como Roberto Farias – Cidade Ameaçada (1960) –, Walter Hugo Khoury – A Ilha (1963) – e Luís Sergio Person – São Paulo S/A (1965).
Com projeção conquistada na televisão, Eva Wilma protagonizou uma novela emblemática: Mulheres de Areia, de Ivani Ribeiro, interpretando as gêmeas Ruth e Raquel, duplicidade viabilizada de maneira artesanal na época. A atriz participou de outras novelas de Ivani, como A Barba Azul e A Viagem. Em Mulheres de Areia formou par com Carlos Zara, que conhecia dos teleteatros, e estabeleceu com ele união inquebrantável na vida e na arte – atuaram juntos nas montagens de Desencontros Clandestinos, Uma Cama para Três, Quando o Coração Floresce, O Preço, Love Letters (Cartas de Amor), na novela Pátria Minha, de Gilberto Braga, e no seriado Mulher, dirigido por Daniel Filho.
Firmou elos na TV tanto com autores – como Aguinaldo Silva, em Pedra sobre Pedra e A Indomada, um dos seus grandes sucessos – e diretores – caso de Luiz Fernando Carvalho, em novelas como O Rei do Gado e Esperança, ambas de Benedito Rui Barbosa, e na minissérie Os Maias, adaptação da célebre obra de Eça de Queiroz a cargo de Maria Adelaide Amaral, autora de um texto que rendeu prêmios a Eva Wilma no teatro, Querida Mamãe.
Cabe mencionar outras importantes ligações profissionais: com os atores Paulo Autran, Gianfrancesco Guarnieri e Raul Cortez e com o dramaturgo e diretor Flávio Marinho, que a conduziu nas montagens de Love Letters (Cartas de Amor), O Manifesto e Um Dia das Mães – texto de sua autoria. Nos últimos anos participou da encenação de Azul Resplendor, dirigida por Renato Borghi e Elcio Nogueira Seixas, e dividiu o palco com Nicette Bruno e Nathalia Timberg nas temporadas paulistana e carioca de O que terá acontecido a Baby Jane?, espetáculo da dupla Charles Möeller/Claudio Botelho fora do gênero musical. Homenageada no Prêmio Cesgranrio de Teatro, Eva Wilma pertenceu a uma incansável e especialmente consistente geração de intérpretes.
Carolina Virgüez em Vozes do Silêncio (Foto: Fabio Ferreira)
Há uma estrutura de suposta repetição que atravessa a dramaturgia de Samuel Beckett. Tanto nas peças curtas quanto nas de maior fôlego, seus personagens parecem aprisionados numa circularidade, numa espécie de movimento que tem seu fim anunciado, mas que não termina de fato. Não se trata exatamente de repetição, na medida em que ocorrem mudanças na continuidade ou retomada das ações. A questão do tempo surge realçada, em especial, numa proposta como a de Vozes do silêncio – Filme não Filme, concebida por Fabio Ferreira e interpretada por Carolina Virgüez, voltada para a interface entre teatro e cinema.
O trabalho reúne três peças curtas de Beckett: Eu Não, Passos e Cadeira de Balanço (traduzido como Cadência). Em Eu Não, uma boca, em movimento frenético, não consegue parar de falar, como se as palavras que saem de seus lábios não decorressem do pensamento. Fabio Ferreira preenche a tela com recortes de boca – um maior, ao centro, e outros menores, ao redor, nas laterais. Não há “apenas” a delimitação de uma boca, mas várias imagens de uma mesma boca. Essa projeção pode transmitir uma sensação fantasmagórica, como se não houvesse alguém falando no momento da apresentação, somado ao fato de o próprio título apontar para uma negação da identidade. Essa identidade invisível, oculta, é destacada, de modo diverso, nas breves referências a A Última Gravação de Krapp inseridas no meio de Eu Não.
A desconexão com o instante imediato também se insinua em Cadeira de Balanço através do recurso da voz em off. Se na peça anterior a boca gesticula sem parar e a voz é quase incessante, aqui impera a voz em off, uma voz de outro tempo, hipnótica como os pêndulos que balançam em sintonia com o movimento cadenciado da atriz. O público se depara com uma mistura de tempos. O vínculo com o passado é valorizado pela imagem dos escombros de uma casa, onde a “ação” acontece, e pelo elo com o cinema, arte que exibe à plateia a realização concluída, evidenciado na alteração de ângulo de visão em relação à cena. A imagem, portanto, é determinada pelo posicionamento da câmera e não (só) pelo olhar do espectador. Há ainda um presente estendido, resultado de um movimento que anuncia constantemente o seu fim (“hora de parar”), que, porém, não chega, e um presente instantâneo reforçado pela palavra “agora”. O texto aparentemente dito de maneira automática em Eu Não e num vagaroso torpor em Cadeira de Balanço contrasta com momentos em que o sentido de urgência se impõe por meio de questionamentos e interjeições (“O que?, “Quem?”, “Não”, em Eu Não, e “Agora” em Cadeira de Balanço).
A terceira peça, Passos, sublinha a articulação temporal embutida na dramaturgia de Beckett e na conjugação entre teatro e cinema, potencializando, contudo, a natureza sensorial inerente a essa experiência. As imagens de pedras e tijolos e o som de cascalho ao caminhar constituem uma partitura que se amalgama à expressão do texto. A proximidade com as artes plásticas é clara, favorecida pelo entrosamento entre as contribuições que integram Vozes do Silêncio – entre elas, a ambientação cenográfica de Fabio Ferreira, a iluminação de Renato Machado (é marcante o rasgo de luz em Cadeira de Balanço), os figurinos de Luiza Marcier. A conjugação entre a palavra e a concepção estética desponta na interpretação de Carolina Virgüez, que, em cada peça, imprime distintos registros vocais – imponente em Eu Não, inebriante em Cadeira de Balanço e suave em Passos – e controla o corpo com precisão.
A importância do tempo em Vozes do Silêncio pede o comprometimento do espectador, convidado a se distanciar do vapt-vupt tão característico dos dias de hoje e aderir a uma proposta imersiva.
Michel Blois, Armando Babaioff e Ana Paula Secco em A Melhor Versão (Foto: Pedro Murad)
As vidas dos personagens de A Melhor Versão – trabalho realizado a partir da integração entre teatro e cinema, bastante valorizada nesses tempos de pandemia – são marcadas pela repressão decorrente do temor de assumirem seus desejos em esfera íntima e, principalmente, pública. Não por acaso, a hipocrisia é a nota comum em seus percursos. Autora do texto, Julia Spadaccini apresenta um casal, Gilda e Osmarindo, que obedece à risca um cotidiano padronizado e destituído de motivação e expressão de afeto, quadro emocional que influencia o filho, Gilsinho.
Sob a capa da moralidade, os personagens sufocam. O tapa que Osmarindo levou do pai o “transportou para uma outra dimensão, para um lugar onde ele se perderia para sempre” e determinou um estreitamento de horizonte que, porém, não anulou por completo a imaginação fértil. Gilda sonha com uma independência que, a princípio, hesita colocar em prática. E Gilsinho se reconhece, desde cedo, na imagem do feminino, projeção que oculta dentro dos limites de uma identidade convencional.
Durante período considerável de suas vidas, os personagens abortam seus impulsos pessoais numa quase inação relativizada, em parte, quando passam a dar vazão a eles no âmbito da imaginação e depois no da concretização, mesmo que clandestina. Osmarindo se despe, momentaneamente, de sua couraça inflexível e se depara com a própria fragilidade. Gilda e Gilsinho ensaiam seus processos de libertação, o que encaminha o segundo rumo a um encontro com “a amante de si mesmo”, definição que sinaliza, nesse texto de Spadaccini, um aroma rodrigueano.
De qualquer modo, o panorama existencial descortinado em A Melhor Versão remete um pouco mais à dramaturgia de Tchekhov, em especial a As Três Irmãs, peça em que as protagonistas externam a necessidade de mudança (por meio do deslocamento da província, onde moram, para a capital), sem, contudo, viabilizá-la. Ainda que os personagens da mãe e do filho no texto de Spadaccini partam para a ação em dado instante, quando transparecem duplos de si (as identidades que até então camuflam e vêm à tona ao seguirem suas vontades) e do outro (Madalena, a vizinha solar, em oposição direta a Gilda), permanece certo elo com a inércia encontrada nas peças de Tchekhov.
A reverberação íntima das experiências particulares é contextualizada em diferentes épocas da história brasileira, caracterizadas por certa estabilidade (1957), violência imposta pela ditadura (1976), esperança na redemocratização (1985) e tragédia planetária (os dias de hoje). Por meio dessa articulação, Spadaccini parece defender que o posicionamento reacionário diante do mundo é consequência da impossibilidade de exercer livremente os próprios desejos.
Em sintonia com o movimento que os personagens fazem, ou pelo menos insinuam, à medida que o texto avança, a concepção de A Melhor Versão, a cargo de Daniel Herz e Luis Felipe Sá, é norteada pelo desmascaramento. Há exposição ao público tanto do que sentem os personagens quanto da estrutura do trabalho. Os atores aparecem entrando na Cidade das Artes, local onde o filme da peça foi feito, e a inclusão desse momento anterior ao início da apresentação propriamente dito lembra, rapidamente, a chegada dos atores ao teatro em Tio Vanya em Nova York (1994), de Louis Malle, que, inclusive, coloca o espectador diante de uma encenação (Tio Vanya, de Tchekhov). Em A Melhor Versão, os diretores propõem operações mais visíveis na conjugação entre teatro e cinema, ao passo que Malle, apenas aparentemente se limitando a registrar uma apresentação, interage com a peça de Tchekhov.
Além do palco, os atores/personagens percorrem outros espaços da Cidade das Artes que intencionalmente não correspondem aos ambientes mencionados na peça. A fricção entre os ambientes fictícios e aqueles onde as cenas são realizadas sem preocupação com reconstituições realistas suscita provável estranhamento que diminui a chance do espectador estabelecer uma relação ilusionista, alienada, com o filme/espetáculo, apesar da autora se debruçar sobre o universo cotidiano, que tende a provocar sensação de identificação em quem assiste. Há ainda um contraste entre a ilusão romântica evocada por meio de citações a expoentes do cinema clássico, como Casablanca (1942), de Michael Curtiz, e A Felicidade não se Compra (1947), de Frank Capra, e a aridez emocional que atravessa as jornadas dos personagens.
Ao promover o diálogo entre as artes, A Melhor Versão se aproxima do cinema na manipulação das imagens, mas se afasta dele ao desconectá-lo do registro realista habitual nessa manifestação, e investe na teatralidade resultante da articulação não literal do texto com os ambientes e os objetos, que adquirem caráter simbólico. O exemplo mais expressivo é o da mesa, elemento cenográfico (direção de arte de Clivia Cohen e José Cohen) que sintetiza a situação de confronto e desequilíbrio, o distanciamento causado pela falta de comunicação e o refúgio da realidade, comportamentos da família apresentada por Spadaccini.
A estrutura do trabalho também é mantida à mostra na dinâmica interpretativa buscada junto ao elenco. Ana Paula Secco, Armando Babaioff e Michel Blois transitam entre a narração e a vivência, frisando a distinção e, em contrapartida, a contaminação entre os planos, tendo em vista que o ato de narrar não se dá através de uma descrição fria, e sim de um comprometimento diante daquilo que é contado.
Em A Melhor Versão, os mecanismos estão em evidência. Na dramaturgia, através da partilha com o público das estruturas de funcionamento psíquico dos personagens; na da construção cênica/cinematográfica, por meio da exposição das engrenagens do fazer artístico.
Sara Antunes no solo Dora (Foto: Alessandra Nohvais)
O projeto da atriz Sara Antunes sobre a guerrilheira Maria Auxiliadora Lara Barcelos, apelidada de Dora, despontou no cinema, no curta-metragem “De Dora, por Sara” (concebido em parceria com Henrique Landulfo), e se estendeu para o teatro, no formato virtual, em trabalho que sintetiza o título (simplesmente “Dora”) e expande o conteúdo. A trajetória de Dora – que militou contra as arbitrariedades cometidas durante a ditadura brasileira, foi presa e torturada e passou por países diversos ao longo dos anos de exílio até se suicidar na Alemanha, em 1976 – atravessa Sara.
Não por acaso, imagens de Dora aparecem refletidas em Sara numa proposta cênica que, apesar de realizada ao vivo, entrelaça tempos históricos e subjetivos distintos. Sara interpreta Dora, diz as palavras da personagem real – na maior parte decorrentes de cartas endereçadas à mãe –, evidencia identificação com ela. O espelhamento entre atriz e personagem, porém, não é e nem poderia ser absoluto. O rosto de Sara, como Dora, surge refletido no espelho e na água como uma imagem nítida, mas que dança diante dos olhos do espectador.
Em determinado instante da apresentação, Ângela Bicalho, mãe de Sara, fala sobre os seus pontos de contato com Dora, sem, contudo, perder de vista as diferenças. Há uma percepção de que o estabelecimento de elos entre percursos de vida não precisa se dar por meio de uma equivalência forçada. Sem abandonar o foco intimista, Sara Antunes amplia a rede de conexões e conjuga a jornada de Dora com as de outras mulheres torturadas durante o regime militar, a exemplo da ex-presidente Dilma Rousseff.
Sara costura com linha e agulha a travessia de Dora, materiais que também remetem ao sacrifício do corpo e, particularmente, a tudo que Dora sofreu no período em que ficou presa. A articulação entre corpo e morte é constante. “Foi dissecando cadáver na aula de anatomia que eu dei o meu primeiro grito”, relata Dora, então estudante de medicina, declaração preservada tanto no filme quanto na encenação. Nas versões para o cinema e o teatro (manifestações agora especialmente interligadas devido ao modo como a prática teatral vem ocorrendo no contexto da pandemia) há momentos de exposição da interioridade do corpo, percorrido a partir da boca, de onde sai o mencionado grito.
Dora se impõe como uma ausência presente, simbolizada na imagem do vestido esvoaçante sem corpo, e como alguém que inevitavelmente carrega em si a tragédia viva (“mamãe, eu não consigo esquecer”). Sara Antunes, por sua vez, dialoga com a história de Dora, destacando a reverberação desse passado na contemporaneidade.
Irene Ravache em Alma Despejada (Foto: Divulgação)
A impossibilidade da preservação da atividade teatral durante o período de pandemia tem dado vazão a propostas artísticas distintas: a realização de trabalhos idealizados para a plataforma virtual, a adaptação para as circunstâncias atuais de encenações anteriormente apresentadas em teatros e a concepção de novas montagens em espaços teatrais, mas conferidas pelos espectadores à distância, por meio da ferramenta tecnológica. Alma Despejada se aproxima do segundo caso. A encenação dirigida por Elias Andreato e interpretada por Irene Ravache para o texto de Andréa Bassitt esteve em cartaz em São Paulo e pode ser conferida, no momento, através da plataforma Sympla, graças a uma gravação feita no Teatro Porto Seguro.
Como o trabalho foi conferido em circunstância anterior – uma sessão única, na casa da atriz, dentro da série Teatro #EmCasaComSesc, com transmissão ao vivo pelo YouTube e pelo Instagram -, cabe fazer determinadas observações referentes àquela experiência. Na ocasião, o cenário original do espetáculo ficou reduzido a poucos elementos – livros e uma caveira – dispostos na proximidade da atriz. O despojamento da cena improvisada, em alguma medida, evidenciou sintonia com o processo de desapego da personagem, Teresa, ao observar sua vida em perspectiva. “Na hora do meu despejo, quero levar apenas o essencial”, afirma. Acumuladora no passado, Teresa deixa de atribuir uma conexão afetiva intransferível aos objetos materiais que povoaram a sua trajetória. Não adere, nesse sentido, à nostalgia, mesmo que ocasionalmente louve os anos que ficaram para trás. “Antes tudo era mais bonito”, compara.
De qualquer modo, Teresa vivia numa espécie de redoma de estabilidade, alienada ao que acontecia à sua volta (“Eu não desconfiei; eu desviei”), especialmente no que diz respeito à realidade conjugal. A personagem do texto de Andrea Bassitt pode levar o espectador a lembrar de Nora Helmer, protagonista de Casa de Bonecas, de Henrik Ibsen, que, a partir de determinado instante, adquire consciência de sua existência no mundo e reivindica independência. Ambas as personagens, Teresa e Nora, se deparam com a ruptura de seus cotidianos acomodados e estáveis e experimentam seus novos momentos como uma libertação. Mas há diferenças estruturais entre as peças: a de Ibsen pertence à dramaturgia realista/naturalista; já a de Bassit se inscreve nessa vertente para, até certo ponto, subvertê-la com a revelação do lugar de onde Teresa relata sua jornada, salpicada por breves menções a fatos reais, como a queda do Muro de Berlim, a escalada da Aids e a eleição de Fernando Collor de Mello.
A suspensão do realismo proposta na peça não implica numa perda de identificação – e, consequentemente, num afastamento – do espectador em relação à cena, aquecida pela interpretação de Irene Ravache. Se por um lado a escassez de recursos da apresentação anterior, em casa, gerou um cerceamento do potencial cênico do espetáculo, por outro essa restrição fez com que as atenções ficassem ainda mais concentradas na atriz, sem eventuais elementos dispersivos ao redor. A frieza da tecnologia – a atriz diante de uma câmera, sem contato direto com os espectadores, ninguém partilhando do mesmo ambiente – contrastou com a qualidade de presença de Irene Ravache, que, por meio da fala, do olhar e de um gestual cotidiano, mas não banal, aproximou a plateia da personagem. A impressão foi a de que a atriz estabeleceu um elo individualizado com o espectador. Seja como for, Irene Ravache faz de Teresa uma personagem concreta, também demonstrando habilidade no desenho de figuras pertencentes ao passado dela, e valoriza as transições do texto.
Alma Despejada é uma escolha coerente dentro do repertório normalmente priorizado por Irene Ravache, voltado para textos que primam por uma comunicação imediata com o público.
Onde assistir: Sympla / Teatro WeDo! Ingressos: R$ 40,00. Até 31/7.