Cena de Estudo nº1: vida e morte, espetáculo do grupo Magiluth (Foto: Lina Sumizono)
CURITIBA – Poema dramático de João Cabral de Melo Neto, Morte e Vida Severina atravessa o tempo na encenação apresentada pelo Grupo Magiluth na última edição do Festival de Curitiba. A partir da apropriação que realizaram do texto original, os integrantes tocam em questões atuais, como a realidade contrastante entre aqueles que morrem de fome e de sede e os que lucram cada vez mais – integrantes de mundos opostos simbolizados, em cena, respectivamente pelas tonalidades amarela e azul -, a crescente uberização do trabalho e as descrições estereotipadas dos nordestinos.
A companhia também transcende fronteiras pré-determinadas. Nordestino deixa de ser uma condição geográfica. No espetáculo dirigido por Luiz Fernando Marques, a designação diz respeito ao conjunto de oprimidos, de migrantes que não encontram um lugar de existência possível, de invisibilizados por um sistema perverso. O nordestino é como um marciano deslocado num planeta dominado por uma lógica de funcionamento patronal e retrógrada. Os anos passam, mas a desigualdade e a exclusão seguem sendo perpetuadas. Não por acaso há, na encenação, uma estrutura que se repete, uma narrativa que constantemente recomeça.
O Grupo Magiluth evidencia, por meio do discurso político e ideológico, um vigor militante que imprime um tom de certeza, característica que, em alguma medida, atrita com a inconclusão sugerida pela palavra estudo, estampada no título do espetáculo. O caráter processual, próprio do estudo, aparece mais na estrutura de uma montagem que satiriza os signos recorrentes da cena contemporânea – como a presença de microfones, só para mencionar um dos elementos. A abordagem, porém, é mais próxima da brincadeira do que da crítica.
Em todo caso, Estudo nº1: vida e morte se inscreve no panorama contemporâneo, marcado tanto pela exposição de processos – por meio da apresentação de trabalhos ainda em estágio de ensaio, integrando, em especial, a programação de festivais de teatro – quanto por montagens, como é o caso dessa do Magiluth, que intencionalmente colocam o público diante de uma cena com aparência de esboço, distante do acabamento clássico do espetáculo bem feito. A sensação que normalmente reverbera no espectador é a de estar diante de algo pulsante, não cristalizado.
A esse espetáculo parece faltar o estado de dúvida, importante no percurso de um estudo, de uma pesquisa. Os atores – Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Lucas Torres e Mário Sergio – assumem uma postura bastante contundente, realçada pela potência das vozes. Seja como for, dificilmente o espectador sairá indiferente do teatro.
Marcos Luiz Maciel e Edson Bueno em Mona Lisa Vs. Adolph Hitler (Foto: Lina Sumizono)
CURITIBA – Uma montagem como a de Mona Lisa Vs. Adolph Hitler – apresentada na Mostra Lúcia Camargo da atual edição do Festival de Curitiba – preenche uma lacuna importante no atual panorama do teatro brasileiro. Essa lacuna diz respeito ao teatro de mercado, vertente a qual esse espetáculo pertence, que sofreu considerável encolhimento nas últimas décadas. Com o investimento decrescente na dramaturgia, o teatro de mercado se concentrou, cada vez mais, em torno do musical – ainda que não se deva negar o lugar do texto dentro do musical. O fato é que, nas últimas décadas, o teatro vem perdendo a sua dimensão pública. Muitos espectadores não especializados se distanciaram, talvez por não se sentirem representados em meio à maioria dos espetáculos em cartaz.
Vale lembrar que o teatro de texto, tradicionalmente classificado como obsoleto, representou o novo no momento inaugural do teatro brasileiro moderno, a partir da segunda metade da década de 1940. Antes dessa época, o teatro profissional era voltado para o brilho do primeiro ator, que, valendo-se de sua personalidade carismática, aproximava os personagens de seu próprio perfil e improvisava a partir do texto com o intuito de estabelecer um elo imediato, por meio do riso, com o espectador.
A implantação do teatro moderno no Brasil foi uma decorrência de um percurso trilhado pelos grupos amadores que, do final dos anos 1930 em diante, começaram a valorizar a peça clássica (Romeu e Julieta e Hamlet, em diferentes momentos do Teatro do Estudante do Brasil) e uma dramaturgia singular, inovadora na estrutura (Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, na revolucionária encenação do grupo Os Comediantes), desconectando-se da linha habitual da comédia de costumes. O movimento amador também se fortaleceu graças aos coletivos de São Paulo (Grupo de Teatro Experimental, Grupo Universitário de Teatro), cujas montagens pautaram a programação inicial do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), companhia que marcou o começo do teatro brasileiro moderno juntamente com o Teatro Popular de Arte (TPA), este fundado no Rio de Janeiro, ambos surgidos em 1948.
A chegada de encenadores estrangeiros ao Brasil, antes, durante e depois da Segunda Guerra Mundial, foi determinante para a realização de mudanças na esfera profissional. De certa maneira, o desembarque do diretor estrangeiro – e tudo aquilo que imprimiu em termos de assinatura na cena – surgiu no grupo amador, a julgar pela condução de Ziembinski para Vestido de Noiva, em 1943. Mas os estrangeiros se estabeleceram, sobretudo, nas grandes companhias empresariadas, principalmente o TBC, onde realizaram encenações pautadas por um equilíbrio delicado entre a liberdade autoral do diretor e a fidelidade ao texto, minuciosamente estudado.
No decorrer do tempo, a percepção em relação ao trabalho com o texto mudou. Os artistas, em especial a partir do início dos anos 1970, sinalizaram uma transição: perceberam que cabia mais se servir do texto do que servir a ele e priorizaram o corpo em detrimento do verbo. A necessidade de imprimir uma expressão pessoal através do texto e a determinação em buscar um material oculto, para além de uma camada interpretativa já evidente no instante da leitura, levaram a uma tendência de dessacralizar a obra. O texto de teatro, como elemento encerrado em si, deixou de ser valorizado. Mas, se na segunda metade do século XX uma cena destituída de operações dramatúrgicas ousadas em relação à peça passou a ser considerada como ultrapassada, hoje o teatro de texto puro e simples talvez volte a soar não exatamente como algo novo, mas como uma novidade, tendo em vista a pouca constância com que é praticado nos palcos brasileiros.
Montagem do Grupo Delírio, Mona Lisa Vs. Adolph Hitler coloca o público diante de uma moldura tradicional. O cenário de Robysom Souza contextualiza o espaço – a sala de um general – onde a ação se desenrola. Os figurinos de Áldice Lopes localizam os personagens de acordo com os postos hierárquicos que ocupam. As duas figuras centrais do texto – um general e um diplomata, que travam embate diante da ordem de Adolph Hitler de destruir Paris no final da Segunda Guerra Mundial – seguem um arco dramático conhecido. Os dois são colocados em lados opostos do conflito (oposição sintetizada no próprio título da peça) e um tenta convencer o outro, aparentemente irredutível, a não praticar uma ação despótica e genocida e se deixar sensibilizar pela arte. O processo de humanização de um personagem resistente já povoou diversos textos, não se impondo, portanto, pela originalidade.
A base da encenação dirigida por Edson Bueno reside na valorização da palavra e do trabalho do ator, características que normalmente traduzem um teatro “puro”, “essencial”, que não aposta numa visualidade dispersiva e concebida tão-somente para agradar as retinas dos espectadores. Nessa proposta de teatro, a maior parte da responsabilidade repousa sobre os atores. Edgard Assumpção demonstra fluência em sua pequena participação. Edson Bueno, no papel do diplomata, realça a característica persuasiva do personagem evidenciando pleno domínio do texto. Marcos Luiz Maciel, como o general, imprime menos colorido em atuação uniformizada.
Em todo caso, há certas especificidades que, apesar de não afastarem a montagem de um formato “de época”, distanciam o resultado do convencionalismo. O embate entre os personagens ocorre num único espaço fechado, mas há não só constantes menções ao espaço aberto (a cidade de Paris) como à estrutura “vazada” da sala do general, um local onde não existe privacidade dadas as diversas e desconhecidas possibilidades de acesso. O texto, apesar da estrutura facilmente reconhecível, resultou de uma adaptação, a cargo do próprio Edson Bueno, tendo como base os filmes Paris está em Chamas? (1966), de René Clement, e Diplomacia (2014), de Volker Schlöndorff. E a iluminação de Beto Bruel, repleta de tonalidades quentes, potencializa, de maneira particularmente expressiva, o espaço cenográfico.
Mona Lisa Vs. Adolph Hitler é uma montagem que propõe, com certa modéstia, uma relação mais direta com o espectador a partir do contato com uma dada verborragia. Presta uma contribuição louvável ao ocupar um lugar vago no atual panorama teatral. O resultado tende a ser, quase inevitavelmente, classificado como bem-comportado. Mas as definições de antiquado e inovador são mais enganosas do que parecem à primeira vista. Edson Bueno transporta para o palco, com algum frescor, um determinado mundo, afastando-se, desse modo, de uma abordagem meramente burocrática e destituída de vida.
O espaço teatral do Campo das Artes, iniciativa do ator Luis Melo, localizado em São Luís do Purunã (Foto: Eduardo Macarios)
CURITIBA – O Festival de Teatro de Curitiba celebra seus 30 anos de existência de uma maneira bastante especial: por meio do retorno das atividades presenciais após dois anos de pandemia. Até o próximo dia 10, o público assiste a espetáculos e acompanha debates e lançamentos de livros, atrações que imprimem a efervescência característica da capital paranaense durante o período do festival.
É verdade que o festival ainda não voltou com a mesma configuração de antes da pandemia. Nessa nova edição não há o Fringe, habitual mostra paralela composta por centenas de espetáculos incluídos na programação por ordem de inscrição, sem seleção prévia. Não se pode esquecer, porém, que nos anos imediatamente anteriores à pandemia o Fringe também passou a contar com curadorias internas, direcionando, em alguma medida, o espectador, muitas vezes perdido em meio à quantidade de ofertas.
Mas o festival, dirigido por Leandro Knopfholz e Fabíula Bona Passini, traz novidades fundamentais. Possivelmente a mais importante é a Mostra Pôr do Sol, composta por espetáculos de companhias de Curitiba – Ave Lola, Súbita Companhia e Cia. Ilimitada. Mais do que as montagens em si, o grande feito reside no local onde são apresentados: o Campo das Artes, espaço com 164 mil metros quadrados criado pelo ator Luís Melo, em São Luís do Purunã, região rural a cerca de uma hora de Curitiba, que conta com teatro, refeitório e alojamento. A grande estrutura concebida por Melo se destina à apresentação de espetáculos e à realização de oficinas, de modo a proporcionar um intercâmbio artístico entre coletivos diversos. Há o desejo de estreitar o vínculo com moradores da região, objetivo que já vem sendo concretizado através, por exemplo, de uma programação voltada para a plateia infanto-juvenil. O Campo das Artes é certamente uma aposta corajosa no futuro.
A localização, distanciada do centro urbano, a configuração espacial – o teatro tem disposição móvel, variando conforme a natureza do trabalho – e a inquietação artística que atravessa o projeto como um todo lembram, mesmo que ao longe, a Cartoucherie, sede do Théâtre du Soleil, companhia conduzida por Ariane Mnouchkine desde 1964 e sediada nos arredores de Paris desde 1970. Pode-se evocar também a iniciativa de Paschoal Carlos Magno relativa à Aldeia de Arcozelo, que, na década de 1960, não mediu esforços para criar um centro cultural em Paty do Alferes (RJ). Vale lembrar que Luís Melo já esteve à frente de outra empreitada dedicada às artes: o Ateliê de Criação Teatral (ACT), espaço bucólico no qual o público assistiu a trabalhos de caráter autoral e investigativo em edições anteriores do festival.
Cão Vadio, encenação da companhia Ave Lola (Foto: Dayana Jacqueline)
Essa 30ª edição conta ainda com a Mostra Ave Lola, que chega à sexta edição, reunindo espetáculos, leituras dramáticas, debates e oficinas. Entre as encenações está Cão Vadio. O título faz menção ao território que recebe personagens expatriados, sem lugar no mundo. Nessa montagem, dirigida por Ana Rosa Tezza, à frente do grupo, há tributo ao teatro e à literatura através da configuração especial (os camarins cenográficos localizados nas extremidades do palco), da valorização de uma estrutura narrativa e de referências assumidas (a peças como Hamlet, de William Shakespeare, e a livros como Cem Anos de Solidão e A Triste e Incrível História de Candida Erendira e sua Avó Desalmada, ambos de Gabriel García Marquez). Personagens como Aureliano e Erendira saltam das páginas dos livros para o palco. No jogo de metalinguagem proposto na dramaturgia, também a cargo de Ana Rosa Tezza, os integrantes do elenco dessa montagem fazem atores que interpretam personagens durante o período de ensaio de um espetáculo. Trata-se, portanto, da apresentação de uma encenação em processo, inacabada, característica que aparece refletida nos figurinos pela metade. As engrenagens teatrais são intencionalmente expostas nas cenas em que os intérpretes se descolam dos personagens e assumem as identidades de atores de uma montagem em estágio de preparação e na assumida estilização que se manifesta nas máscaras bem evidenciadas e nos adereços (bonecos, valendo destacar o do ancião). Essa evidenciação do teatral reforça, ao invés de dissolver, o encanto lúdico de uma arte marcadamente artesanal como o teatro.
Outro trabalho instigante inserido na programação paralela do festival é Derrota, resultado da parceria entre o coletivo Projeto Gompa e a Cia. Incomodete, apresentado no teatro da Biblioteca Pública do Paraná. Sob a direção de Camila Bauer, a atriz Liane Venturella realiza breve experimento a partir do texto de Dimitris Dimitriádis. A estrutura intencionalmente repetitiva do texto, a reduzida movimentação da atriz e fala também propositalmente destituída de inflexões variadas exercem efeito hipnótico sobre o espectador, tragado para dentro do trabalho por uma via sensorial. Ainda fora da Mostra Oficial há diversas iniciativas reunidas na palavra Interlocuções: oficinas, palestras, debates e lançamentos de livros – entre eles, Tempos de Viver e de Contar, publicação comemorativa dos 40 anos do Grupo Galpão.
A tradicional Mostra Oficial ganhou o nome de Lucia Camargo, uma justa homenagem à ex-curadora do festival que morreu em 2020. Parte dos espetáculos diz diretamente respeito à história do festival, na medida em que foram apresentados com sucesso em edições anteriores. São os casos de Conselho de Classe, montagem da Cia. dos Atores para a peça de Jô Bilac, O Casamento, trabalho da Cia. os Fodidos Privilegiados a partir do folhetim de Nelson Rodrigues, Parlapatões Revistam Angeli, do grupo Os Parlapatões, e Till, a Saga de um Herói Torto, texto de Luís Alberto de Abreu, encenação do Grupo Galpão. Também lembrando os 30 anos do Festival de Curitiba, a exposição de fotos de espetáculos do acervo de Lenise Pinheiro, parte delas exposta no Museu Oscar Niemeyer, que acompanhou o evento desde o início como fotógrafa do jornal Folha de S.Paulo.