Composição e transparência

Andréa Beltrão e Chico BF em Lady Tempestade, encenação em cartaz no Teatro Poeira (Foto: Felipe Ovelha)

Andréa Beltrão surge como atriz que constrói personagens e, ao mesmo tempo, como intérprete desarmada diante do público que a assiste em Lady Tempestade, encenação sobre a jornada da destemida advogada Mércia Albuquerque, que defendeu presos políticos durante os anos do regime militar no Brasil, principalmente em 1973 e 1974.

No palco do Teatro Poeira, Andréa interpreta uma personagem da realidade, a mencionada Mércia, por meio de recursos físicos e vocais, incluindo a “reprodução” do sotaque da advogada pernambucana. Andréa se move com agitação febril, transmitindo a determinação de Mércia através de palavras que se tornam corporificadas.

Além de Mércia, Andréa se desdobra em outras personagens, em especial A., a mulher que recebe os diários de Mércia e “se relaciona” com os relatos em estado de angústia ativa. Andréa atua, sugere um gosto por pinceladas de composição de uma variedade de personagens, sem, porém, enveredar por uma histriônica exibição de versatilidade. Toda a criação exterior é preenchida pela interiorização de Mércia.

Andréa concilia a estilização de uma atuação não confinada nos limites do corpo cotidiano com uma postura transparente, que se manifesta na breve interação com o público logo antes da apresentação efetivamente começar e nos instantes em que, sem assumir a primeira pessoa ou uma perspectiva militante, demonstra conexão com as questões abordadas num espetáculo que articula a realidade concreta como a dimensão poética.

No momento mais sensível da montagem, Andréa se distancia dos mecanismos de representação para descrever o mar como coração do mundo. A instigante cenografia de Dina Salém Levy, que cobre a cena com um azul marinho uniforme, remete ao mar, mas não como espaço a ser contemplado em sua beleza e imensidão, e sim como natureza gasta, desbotada, que esconde o proibido, o censurado, os corpos dos desaparecidos. Um mar que precisa ser rasgado para que a verdade venha à tona, conforme faz Andréa no final de inegável impacto. A renúncia ao belo transparece ainda na iluminação de Sarah Salgado e Ricardo Vivian, de tonalidade melancólica.

Há, em Lady Tempestade, movimentos de abertura – da realidade palpável para a subjetividade e do passado recente para a atualidade. Na dramaturgia, Silvia Gomez frisa o contexto de interdições da ditadura militar na primeira metade dos anos 1970, mas propõe uma conjugação entre diferentes períodos históricos, da década de 1960 aos dias de hoje. Sem perder de vista a trajetória de Mércia numa época e numa região específicas do país, Silvia Gomez amplia o foco para realçar a perpetuação da violência.

Um ponto particularmente dramático ganha destaque no texto: a tragédia das mães diante do desaparecimento e do assassinato dos filhos. Não por acaso, Andréa está em cena ao lado do filho, Francisco (Chico BF) – que interage de modo discreto com a mãe/atriz e faz a operação da trilha sonora no palco. As iniciais de nomes dos personagens – A. e F. – são as mesmas de Andréa e Francisco, o que favorece o entrelaçamento de realidade e ficção.

A contundência emocional contida na evocação da luta de Mércia é, em certo grau, desidratada por Silvia Gomez no texto e por Yara de Novaes na direção. A constante fusão entre planos distintos, o acúmulo de personagens e funções (a vivência e a narração) por uma única atriz e a inserção de signos recorrentes no teatro contemporâneo (como o microfone) afastam a possibilidade de uma relação ilusionista com a cena e tendem a esfriar a apreciação do espectador. A valorização da estrutura, intencionalmente à mostra, e a sobrecarga de elementos fazem com que a montagem fique algo cerebral. É uma opção discutível – pela provável perda de envolvimento do público – e, por outro lado, defensável – pela não adesão ao melodramático. Seja como for, o incômodo suscitado no espetáculo (sensação sublinhada pelos sons de agonia que ocasionalmente invadem a cena) evidencia coragem.

Lady Tempestade traz o oculto e o desvelado reunidos no refinado trabalho de Andréa Beltrão, que expressa sinceridade e comprometimento tanto ao fazer uso de procedimentos de representação quanto ao abdicar deles num ato de revelação.

Lady Tempestade – Texto de Silvia Gomez. Direção de Yara de Novaes. Com Andréa Beltrão. Teatro Poeira (R. São João Batista, 104). De qui. a sáb. às 21h, dom., às 19h. Ingressos: R$ 100,00 e R$ 50,00 (meia-entrada).