Alessandra Maestrini, Lilian Valeska, Carol Garcia e André Dias em Kafka e a Boneca Viajante: até amanhã no Teatro Clara Nunes (Foto: Ale Catan)
Dois espetáculos atualmente em cartaz se debruçam sobre a interação entre o escritor Franz Kafka e uma menina inconsolável após a perda de sua boneca. Um, destinado ao público adulto, é Kafka e a Boneca Viajante, que, dirigido por João Fonseca, cumpriu temporada no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) e encerra as apresentações, nesse domingo, no Teatro Clara Nunes. O outro, voltado à plateia infanto-juvenil, é A História de Kafka e a Boneca Viajante que, sob a direção de Isaac Bernat, estreou recentemente no Futuros. Ambos partiram da mesma base – o livro do escritor Jordi Sierra I Fabra – na produção de dramaturgias próprias.
Determinado a minimizar o sofrimento da menina, Kafka teria começado a escrever cartas para ela como se fosse a boneca em viagem pelo mundo. A história traz à tona o esforço, inevitavelmente limitado, de suprir uma ausência (morte). Mas também destaca as infinitas aberturas para a imaginação a partir, no caso, da leitura das cartas fictícias. Ao ouvir as cartas lidas por Kafka, a menina fabrica as suas imagens. Uma amplitude ligada, de alguma maneira, à experiência vivenciada pelo espectador no teatro, uma manifestação artesanal, de restritas possibilidades visuais, que, justamente por isso, estimula quem assiste a projetar universos imaginários.
Em Kafka e a Boneca Viajante, Rafael Primot assina o texto, mantendo o foco na conexão entre Kafka e a menina. Há, contudo, momentos em que os atores saem dos personagens e fazem breves comentários, em intencionais quebras da ilusão. Nesses instantes, decorrentes da dramaturgia ou da direção, o caráter lúdico se desfaz e o texto se torna esgarçado. Em A História de Kafka e a Boneca Viajante, Julia Bernat, encarregada do texto, concentra na relação entre os personagens principais, sem interferências dispersivas.
João Lucas Romero e Laura Becker em A História de Kafka e a Boneca Viajante (Foto: Dalton Valério)
As concepções estéticas das montagens são bem distintas. No espetáculo de João Fonseca, cores intensas tomam conta da cena. O vermelho da cenografia de Nello Marrese e o azul da iluminação de Paulo Cesar Medeiros contrastam com os tons fechados dos expressivos figurinos de João Pimenta. O selo é elemento fundamental no cenário – há um grande, encravado no palco – e, perifericamente, uma mesa e uma cadeira sinalizam, de modo discreto, a atividade profissional de Kafka. Na montagem de Isaac Bernat, sobressai uma árvore de madeira, escolha justificada na passagem em que Kafka relata sobre a suposta jornada da boneca em Burkina Faso e faz referência à tradição do griot, objeto de pesquisa do diretor.
A música é componente realçado nas duas encenações. Em Kafka e a Boneca Viajante, a direção musical foi exercida por Tony Lucchesi e em A História de Kafka e a Boneca Viajante, por Pedro Luís. Nesse terreno, o primeiro espetáculo gera certo estranhamento devido à inclusão de canções conhecidas e heterogêneas, opção que destoa em meio a uma proposta artística consideravelmente autoral.
No que diz respeito às interpretações, os caminhos também foram diversos. As construções físicas e vocais imperam em Kafka e a Boneca Viajante (direção de movimento de Marcia Rubin). É o que se pode perceber na composição da boneca de Alessandra Maestrini – atriz que confirma a voz tecnicamente burilada e evita impor sua forte personalidade cênica sobre a personagem –, na postura irrequieta da menina de Carol Garcia – em criação que escapa da armadilha da caricatura –, no perfil soturno e contido do Franz Kafka de André Dias e na presença atenta de Dora, esposa de Kafka, feita por Lilian Valeska – os dois últimos integrantes do elenco acumulando, em cenas curtas, os papéis do soldadinho de chumbo e da gaivota. Em A História de Kafka e a Boneca Viajante, João Lucas Romero interpreta, com fluência, um Kafka enérgico, sanguíneo, e Laura Becker faz a menina sem chegar a imprimir uma característica mais específica.
Proposições para um enredo único, Kafka e a Boneca Viajante e A História de Kafka e a Boneca Viajante se distinguem nos vários campos de criação: operações dramatúrgicas, concepções estéticas e registros interpretativos. Os elos estabelecidos com os espectadores, evidentemente, são diferentes.
KAFKA E A BONECA VIAJANTE – Texto de Rafael Primot. Direção de João Fonseca. Com Alessandra Maestrini, André Dias, Carol Garcia e Lilian Valeska. Teatro Clara Nunes (R. Marquês de São Vicente, 52/3º andar). Hoje às 20h30 e amanhã às 19h. Ingressos: De R$ 19,50 a R$ 140,00.
A HISTÓRIA DE KAFKA E A BONECA VIAJANTE – Texto de Julia Bernat. Direção de Isaac Bernat. Com João Lucas Romero e Laura Becker. Futuros (R. Dois de Dezembro, 63). Sáb. e dom., às 16h (hoje e amanhã sessões extras às 18h). Ingressos: R$ 20,00 (meia-entrada) e R$ 40,00.
A memória do teatro vive em permanente risco. Mesmo nos dias de hoje, quando a preocupação com o registro dos espetáculos é notadamente maior que em décadas anteriores, não há como reter o acontecimento teatral. Uma apresentação é sempre diferente da outra. E, por mais longeva que seja a carreira de determinada montagem, a última noite inevitavelmente chegará.
Os melhores registros não reproduzem o momento imediato de conexão entre ator e espectador. Mas são fundamentais, ainda mais numa época em que a quantidade de programas impressos é cada vez menor. Um livro como Festival de Teatro de Curitiba (Edições Sesc São Paulo), que traz uma seleção de fotos de espetáculos captados por Lenise Pinheiro ao longo de 30 anos – 1992 a 2022, excetuado 2021 por causa da pandemia – de cobertura do evento, é, sem dúvida, um feito muito importante. Reúne preciosos instantâneos de cenas de montagens emblemáticas. Depois do lançamento na recém-encerrada edição do Festival de Curitiba, o livro ganha hoje nova sessão de autógrafos, no Sesc Pompeia, em São Paulo, acrescida de conversa entre Lenise e a dramaturga Luh Maza, com mediação de Gabriela Melão.
Se no monumental Fotografia de Palco, publicação dedicada ao ator e fotógrafo Fredi Kleemann, Lenise dividiu a vasta seleção de fotos em capítulos voltados para recortes das encenações (figurinos, cenários, iluminação), em Festival de Teatro de Curitiba o destaque recai sobre os rostos dos intérpretes, em close, apesar de várias fotografias evidenciarem as cenas de maneira ampla, panorâmica.
A trajetória de Lenise no Festival de Curitiba já tinha rendido, em 2022, uma exposição, intitulada Viva! 30 Anos, disposta no vão livre do Museu Oscar Niemeyer. Vale lembrar que Lenise também lançou um livro em homenagem ao Teatro Oficina (Fotografias – Teatro Oficina), no qual documentou os espetáculos desde a reabertura da companhia, rebatizada de Uzina Uzona – de As Boas a Cacilda!!!. Em relação a Festival de Teatro de Curitiba, livro intercalado com depoimentos de artistas e da própria Lenise, não há como mencionar todos os espetáculos representados por meio das fotos, mas cabe ressaltar alguns, ano a ano:
1992
Sonhos de uma Noite de Verão
Direção: Cacá Rosset
Elenco: Grupo Ornitorrinco
As Boas
Direção: José Celso Martinez Corrêa
Elenco: Teatro Oficina/Uzyna Uzona. Ator convidado: Raul Cortez
Miriam Virna, Cleani Marques e Catarina Acioly em Ir e Vir, parte do projeto Felizes para Sempre, dos Irmãos Guimarães (Foto: Lenise Pinheiro)
2004
O que Diz Molero
Direção: Aderbal Freire-Filho
Elenco: Chico Diaz, Augusto Madeira, Orã Figueiredo, Raquel Iantas.
Agreste
Direção: Marcio Aurélio
Elenco: Joca Andreazza e Paulo Marcello
2005
Foi Carmem
Direção: Antunes Filho
Elenco: Centro de Pesquisa Teatral (CPT)
Hysteria
Direção: Luiz Fernando Marques
Elenco: Grupo XIX de Teatro
Baque
Direção: Monique Gardenberg
Elenco: Deborah Evelyn. Emílio de Mello, Carlos Evelyn
2006
A Descoberta das Américas
Direção: Alessandra Vanucci
Elenco: Julio Adrião
Otelo da Mangueira
Direção: Gustavo Gasparani
Elenco: Marcelo Capobiango, Claudia Ventura, Susana Ribeiro, Gustavo Gasparani, Ana Carbati, Patrícia Costa, Jorge Medina, Juliana Clara, Lilian Valeska, Sheila Mattos, Pedro Lima, Marcelo Vianna, Erika Riba, Sueli Guerra, Anderson Mello, Aldri Anunciação, Rodrigo França, Jurema da Mata, Jorge Maya
2007
A Alma Imoral
Direção: Amir Haddad
Elenco: Clarice Niskier
A Hora e a Vez de Augusto Matraga
Direção: André Paes leme
Elenco: Vladimir Brichta, Fábio Lago, Jackson Costa, Ernani Moraes, Pedro Gracindo, Georgiana Góes, Marcelo Flores, Adriano Saboya, Cyda Morenyx, Francisco Salgado
Besouro Cordão de Ouro
Direção: João das Neves
Elenco: Alan Rocha, Ana Paula Black, Cridemar Aquino, Gilberto Santos da Silva Laborio, Iléa Ferraz, Leticia Soares, Mauricio Tizumba, Nívea Magno, Raphael Garcia, Sergio Pererê, Valéria Monã, Victor Alvim Lobisomem, William de Paula, Wilson Rabello
2008
Aqueles Dois
Direção e atuação: Cia. Luna Lunera
2009
Rainhas
Direção: Cibele Forjaz
Elenco: Georgette Fadel e Isabel Teixeira
O Estrangeiro
Direção: Vera Holtz
Elenco: Guilherme Leme Garcia
A Mulher que Escreveu a Bíblia
Direção: Guilherme Piva
Elenco: Inez Viana
2010
Till, a Saga do Herói Torto
Direção: Júlio Maciel
Elenco: Grupo Galpão
In On It
Direção: Enrique Diaz
Elenco: Emilio de Mello e Fernando Eiras
Memória da Cana
Direção: Newton Moreno
Elenco: Os Fofos Encenam
Simplesmente Eu, Clarice Lispector
Direção: Amir Haddad
Elenco: Beth Goulart
Vida
Direção: Marcio Abreu
Elenco: Companhia Brasileira de Teatro
2011
Inverno da Luz Vermelha
Direção: Monique Gardenberg
Elenco: Marjorie Estiano, Rafael Primot, André Frateschi
Sonhos para Vestir
Direção: Vera Holtz
Elenco: Sara Antunes
Oxigênio
Direção: Marcio Abreu
Elenco: Companhia Brasileira de Teatro
Sua Incelença, Ricardo III
Direção: Gabriel Villela
Elenco: Clowns de Shakespeare
2012
Julia
Direção: Christiane Jatahy
Elenco: Julia Bernat, Rodrigo dos Santos
De Verdade (Ou a Mulher Certa)
Direção: Marcio Abreu
Elenco: Kika Kalache e Guilherme Piva
Palácio do Fim
Direção: José Wilker
Elenco: Vera Holtz, Camila Morgado e Antônio Petrin
O Idiota: Uma Novela Teatral
Direção: Cibele Forjaz
Elenco: Mundana Companhia de Teatro
A Peça do Casamento
Direção: Pedro Brício
Elenco: Guida Vianna e Dudu Sandroni
O Jardim
Direção: Leonardo Moreira
Elenco: Cia. Hiato
Estamira – Beira do Mundo
Direção: Beatriz Sayad
Elenco: Dani Barros
Ato de Comunhão
Direção e atuação: Gilberto Gawronski
Luis Antonio-Gabriela
Direção: Nelson Baskerville
Elenco: Cia. Mungunzá de Teatro
Gilberto Gawronski em Ato de Comunhão (Foto: Lenise Pinheiro)
2013
Esta Criança
Direção: Marcio Abreu
Elenco: Companhia Brasileira de Teatro
Pólvora e Poesia
Direção: Marcio Aurélio
Elenco: João Vitti e Leopoldo Pacheco
2014
Contrações
Direção: Grace Passô
Elenco: Debora Falabella e Yara de Novaes
Cais ou Da Indiferença das Embarcações
Direção: Kiko Marques
Elenco: Velha Companhia
Quem tem Medo de Virginia Woolf?
Direção: Victor Garcia Peralta
Elenco: Zezé Polessa, Daniel Dantas, Erom Cordeiro e Ana Kutner
BR Trans
Direção e atuação:Silvero Pereira
2015
Gotas D’Água sobre Pedras Escaldantes
Direção: Rafael Gomes
Elenco: Luciano Chirolli, Gilda Nomacce, Nana Yazbek, Felipe Aidar
2016
Um Bonde Chamado Desejo
Direção: Rafael Gomes
Elenco: Maria Luisa Mendonça, Eduardo Moscovis, Virginia Buckowski, Donizeti Mazonas, Fabrício Licursi, Fernanda Castello Branco e Matheus Martins
Urinal
Direção: Zé Henrique de Paula
Elenco: Núcleo Experimental
Caranguejo Overdrive
Direção: Marco André Nunes
Elenco: Aquela Companhia
2017
Antígona
Direção: Amir Haddad
Elenco: Andréa Beltrão
A Casa dos Budas Ditosos
Direção: Domingos Oliveira
Elenco: Fernanda Torres
2018
A Ira de Narciso
Direção: Yara de Novaes
Elenco: Gilberto Gawronski
Tom na Fazenda
Direção: Rodrigo Portella
Elenco: Armando Babaioff, Gustavo Vaz, Kelzy Ecard e Camila Nhary
Grande Sertão: Veredas
Direção: Bia Lessa
Elenco: Caio Blat, Luisa Arraes, Luiza Lemmertz, Leon Góes, Daniel Passi, Leonardo Miggiorin, Balbino de Paula.
Cena de Sonho de uma Noite de Verão, encenação da Trupe Ave Lola (Foto: Maringas Maciel)
Reproduzir no palco a natureza esplendorosa minuciosamente descrita por William Shakespeare nas páginas de Sonho de uma Noite de Verão é uma tarefa quase impossível. Ana Rosa Genari Tezza, à frente da Trupe Ave Lola e dessa montagem do grupo (atração do Fringe na recém-encerrada edição do Festival de Curitiba), não procura reconstituir tais imagens. Ao contrário, investe na síntese. É justamente a construção da cena a partir de elementos reduzidos que acentua a teatralidade desse trabalho.
Na contramão dos aparatos tecnológicos, essa encenação busca estimular a imaginação do espectador por meio de recursos restritos – basicamente lençóis e praticáveis. Há pouco mais na ambientação cenográfica de Daniel Pinha, como a cortina de tiras vermelhas, cor também escolhida para o chão. Mesmo com o impacto do vermelho, a concepção estética é marcada pelo predomínio do branco e do preto dos figurinos de Ana Rosa Genari Tezza e Helena Tezza, com destaque para transparências.
A percepção de que a arte teatral independe de um acúmulo de objetos surge manifestada na própria peça de Shakespeare. Como afirma o carpinteiro Pedro Cunha, um dos integrantes da representação preparada para a cerimônia de casamento de Teseu e Hipólita, “essa nesga de grama será nosso palco”.
Personagens reais e fantásticos se mesclam nessa peça, ambientada, em boa parte, num bosque nas proximidades de Atenas. Nessa fantasia amorosa, oscilante entre sonho e realidade, jovens, confrontados com a intolerância dos mais velhos, simbolizada por Egeu, fogem para não se separarem. Os quiproquós emocionais incluem Hérmia, Helena, Lisandro e Demétrio, que têm seus sentimentos momentaneamente alterados por uma espécie de poção mágica pingada nos olhos pelo irrequieto duende Bute.
Os trabalhadores, que experimentam o ofício da atuação nos mencionados ensaios para a representação, acabam sendo inseridos numa teia de enganos que agita esse suave exemplar da dramaturgia de Shakespeare. Ao ensaiarem o interlúdio, os trabalhadores se conscientizam da distância entre ator e personagem. Falam sobre a importância de alertar o público para o fato de que não estão se fundindo, se amalgamando, aos personagens, mas que permanecem descolados deles, apesar de portarem as identidades ficcionais durante a apresentação.
Ainda que envolva o leitor/espectador na atmosfera de um mundo delirante e febril (como a paixão), Shakespeare rompe com a ilusão ao frisar o teatro como fingimento, como artifício. Em sintonia com essa perspectiva, o elenco da Trupe Ave Lola – formado por Cesar Matheus, Helena de Jorge Portela, Helena Tezza, Kauê Persona, Larissa de Lima, Marcelo Rodrigues, Pedro Ramires, Wenry Bueno e Willa Thomas – não encarna os personagens, não some por trás deles, mas se dedica a um registro em que a interpretação intencionalmente aparece, assim como a qualidade no dizer o texto.
A opção por Sonho de uma Noite de Verão é coerente com a trajetória da Trupe Ave Lola, que costuma se afastar do realismo e enveredar pela trilha do onírico. A conexão do público com o espetáculo é favorecida pelo espaço de apresentação – uma tenda, erguida na sede da companhia – que realça o caráter lúdico da empreitada.
Leandro Knopfholz e Fabíula Bona Passini dividem a direção do Festival de Curitiba (Foto: Annelize Tozetto)
Ao chegar à 32ª edição, o Festival de Curitiba evidencia preocupação com a preservação de suas características centrais, mas sem ceder à acomodação. Permanecem a programação dividida entre mostra oficial (rebatizada de Mostra Lucia Camargo, em homenagem a uma das curadoras do festival, que morreu em 2020) e Fringe. Dentro disso, porém, diversas propostas despontaram ao longo do tempo. A mais recente é a Mostra Surda de Teatro, voltada para montagens concebidas em torno do protagonismo de artistas surdos.
No que se refere à programação oficial, os grupos de curadores têm mudado. Já estiveram nessa função os críticos Alberto Guzik, Macksen Luiz e Tania Brandão, os jornalistas João Cândido Galvão e Celso Curi, a gestora cultural Lucia Camargo, o diretor Marcio Abreu e o ator Guilherme Weber. No momento, a curadoria é assinada pela produtora Daniele Sampaio, pela atriz Giovana Soar e pelo crítico Patrick Pessoa.
O Fringe, que surgiu em 1998 seguindo o modelo do Festival de Edimburgo, foi criado com o objetivo de apresentar ao público um apanhado da cena brasileira através da oferta de espetáculos reunidos por inscrição e não por seleção. Depois o Fringe passou a contar com mostras internas que, de alguma maneira, localizam o espectador em meio à variedade de atrações.
As alterações que vêm marcando o festival também estão ligadas à troca ou da inclusão de nomes na direção do evento. Em 1992, o festival era capitaneado por Carlos Eduardo Bittencourt, Cássio Chameki, César Heli Oliveira, Leandro Knopfholz e Victor Aronis. Aos poucos, os sócios migraram para outros projetos. Leandro e Cássio, por exemplo, foram trabalhar na prefeitura de Curitiba. A condução do festival ficou a cargo, entre 2001 e 2007, de Victor, que se distanciou para se dedicar ao Festival de Dança de Joinville. Hoje Leandro se encontra à frente do festival juntamente com Fabíula Bona Passini, que, no decorrer do tempo, exerceu funções diferentes dentro do festival: apoio na bilheteria, recepcionista, produtora e, agora, diretora. O festival, felizmente, está com as próximas edições garantidas, graças ao patrocínio trienal da Petrobras.
Entrevista / Leandro Knopfholz
Como era a estrutura de programação nos primeiros anos do festival?
O festival começou em 1992. Mas o primeiro Fringe aconteceu em 1998. Desde o início havia a Programação Associada, que reunia os espetáculos em cartaz em Curitiba. Em 1997 conheci o Fringe no Festival de Edimburgo. Sugeri que fizéssemos aqui também. Mapeamos mais de 100 possíveis salas de apresentação em Curitiba, mas poucas se encontravam em estado de utilidade. Equipamos minimamente as salas e inauguramos o Fringe. Oferecíamos, além da sala, som, luz e um profissional. O Fringe ganhou projeção. Também seguindo o exemplo de Edimburgo, onde o Fringe é uma grande feira, comecei a convidar programadores.
O Fringe se propõe a ser um espaço democrático, que reúne centenas de espetáculos por inscrição. Mas em que medida essa democratização é possível quando, por questões econômicas, a maior parte dos espetáculos que participa do festival é do Sudeste?
Sempre quis ter espetáculos de todos os estados do Brasil. Em determinado momento achamos que o Fringe ficou confuso e passamos a organizar mostras internas.
Como surgiram essas mostras?
Em 2003, Diogo Portugal nos procurou e propôs uma mostra de stand-up. Assim surgiu o Risorama. Depois, inspirado no Taste, realizado em Edimburgo, criamos o Gastronomix. Não inventei nada; copiei. Mas fui o primeiro a copiar. Também fizemos a mostra XXX, voltada para espetáculos eróticos, e outras: MishMash, Mostra dos Excluídos.
A partir da sua memória emotiva, quais os espetáculos que você destacaria ao longo dessas 32 edições do festival?
Sonho de uma Noite de Verão, com direção do Cacá Rosset, A Bao a Qu, da Companhia dos Atores, As Boas, do Teatro Oficina, A Vida é Sonho, assinado por Gabriel Villela, The Flash and Crash Days, espetáculo do Gerald Thomas, Corra enquanto é Tempo, A Farsa da Esposa Muda, A Rua da Amargura – esses três do Grupo Galpão –, Nova Velha História, encenação do Antunes Filho, Roberto Zucco, montagem de Nehle Franke, Angeli, d’Os Parlapatões, a Trilogia Bíblica (Paraíso Perdido, O Livro de Jó, Apocalipse 1,11) concebida por Antonio Araujo no grupo Teatro da Vertigem, A Máquina, espetáculo de João Falcão, 25 Homens, com direção de François Kahn, e Needles and Opium, assinado por Robert Lepage. Apesar de Curitiba ser considerada uma cidade careta, tivemos apoio para trazer espetáculos polêmicos, como O Melhor do Homem, encenação do Ulysses Cruz que foi cancelada em São Paulo por causa da temática gay, e os mencionados Sonho de uma Noite de Verão e as encenações da Trilogia Bíblica. A questão da inclusão veio depois. Nesse sentido, outro trabalho que integrou a programação foi BR Trans, solo de Silvero Pereira.
Como se dá a divisão de tarefas entre você e Fabíula na direção do festival?
Fico com a parte de patrocínio e orçamento. Aliás, graças ao patrocínio trienal da Petrobras – a primeira vez que conseguimos –, as edições de 2025 e 2026 já estão garantidas. Fabíula fica voltada para produção e programação. Mas pretendo me afastar. Estou cansado. Tenho aceitado “não” como resposta muito rápido e isso não é bom.
Entrevista / Fabíula Bona Passini
Como começou a sua ligação com o Festival de Curitiba?
Sou de Xanxerê, município de Santa Catarina. Comecei a fazer teatro aos 11 anos. Vim para Curitiba cursar faculdade de teatro já por causa do festival. Queria muito trabalhar no festival. Em 2009 abriu uma vaga de apoio na bilheteria. Naquela época, os ingressos não eram vendidos online – só fisicamente. O meu trabalho consistia em conversar com as pessoas na fila para que quando chegasse a hora de comprar já soubessem o espetáculo que iriam assistir. Em 2010 abriu uma vaga de recepcionista. Consegui a vaga. Depois comecei a me envolver com produção executiva e a vontade de ser atriz foi diminuindo. Em determinado momento fiz a direção de produção do festival. Em 2019, Leandro me chamou para a direção do festival. Mas o evento foi cancelado em 2020 por causa da pandemia.
O festival vem mudando os curadores nos últimos anos. Essas mudanças refletem, de alguma maneira, alterações no perfil da programação?
Peguei o momento de passagem da curadoria de Celso Curi, Lucia Camargo e Tania Brandão para Guilherme Weber e Marcio Abreu. Agora a curadoria é assinada por Daniele Sampaio, Giovana Soar e Patrick Pessoa. Estabelecemos que cada grupo de curador deve permanecer no festival durante dois anos. Acho que Daniele, Giovana e Patrick continuam, de certa maneira, o trabalho de Guilherme e Marcio, no que se refere à preparação de um público para o teatro alternativo. Hoje a curadoria se preocupa em convidar artistas e grupos que nunca vieram ao festival. Em todo caso, diversidade é fundamental. Precisamos ter comédias como Duetos e trabalhos identitários como Manifesto Transpofágico. Em alguns casos, o festival convida diretamente espetáculos, como foi o caso de O que nos mantém Vivos?, mas a curadoria abraça essa escolha.
No decorrer do tempo, o Fringe vem passando por alterações, não? Essa parte do festival, destinada à reunião de espetáculos por ordem de inscrição e não a partir de uma seleção, começou a contar com mostras internas.
Depois da pandemia, pensei: ou o Fringe muda ou termina. Não adiantava mais abrirmos um cadastro e fornecermos um espaço. Muitos espetáculos vinham enfrentando problema de falta de público. Também havia a questão da troca incessante de cenários em espaços que abrigavam várias montagens. Criamos um sistema de inscrições de mostras e, a partir daí, selecionamos 10. Cada mostra recebe R$ 5 mil, o espaço e a hospedagem. Estabelecemos que cada companhia deve apresentar quatro espetáculos e uma ação formativa. Além disso, criamos a rodada de negociações: programadores de espaços de diversas cidades vêm assistir aos espetáculos. Isso deu muita vida ao Fringe.
A escolha dessas mostras implica numa curadoria?
Não propriamente. Não olhamos para os espetáculos individualmente, e sim para as propostas das mostras.
O Festival de Curitiba é fundamentalmente destinado à produção teatral brasileira, com raras aberturas para espetáculos internacionais. Há intenção de incluir montagens estrangeiras ou prevalece o desejo de manter o perfil nacional? Na mostra oficial (Lucia Camargo) costumamos ter um espetáculo internacional. Esse ano teríamos três. Mas, por questões econômicas, precisamos tirá-los. Não tínhamos confirmação de patrocinador. Ano que vem queremos fazer uma Mostra Latina.
Filipe Bregantim, Fernando Paz e Fernando Sampaio em Ordinários, encenação dirigida por Alvaro Assad (foto: Paulo Barbuto)
O recurso do humor realça, em Ordinários, o absurdo da guerra. O espetáculo da companhia LaMínima, em cartaz até o próximo domingo no Sesc Copacabana, apresenta personagens concebidos em linguagem clownesca. São soldados que compõem um pequeno exército Brancaleone, evidenciando posturas tão distintas quanto inadaptadas ao contexto da guerra: um que tenta impor voz de comando, tarefa que desempenha de maneira um tanto atabalhoada; outro que obedece à risca uma espécie de manual de comportamento, como bom aluno que decorou a lição, mas age sem sucesso; e mais um que foge das obrigações e, ao contrário do previsto, se mostra mais eficiente.
Esses soldados encontram-se perdidos, em busca do major, aguardando ordens para seguir em frente. Não fosse por esse vago fio condutor, as cenas poderiam ser assistidas independentemente, como quadros avulsos, o que, de alguma forma, acontece em pelo menos um instante do espetáculo: aquele em que um dos soldados dá vazão, a partir dos sons extraídos de bordas de vidros, a um número musical. Não por acaso, na ficha técnica não há menção a um texto, e sim a um roteiro criado coletivamente pelo dramaturgo Newton Moreno, pelo diretor Alvaro Assad e pelos atores da companhia.
Se por um lado esse número musical representa uma intencional quebra na continuidade dramatúrgica, por outro está plenamente afinado com a proposta de uma encenação que celebra o teatro como artesanato, feito com elementos escassos, na contramão da suntuosidade. Nesse trabalho concretizado com pouco, cada componente da montagem revela esmero na preparação – como os figurinos gastos, repletos de marcas de uso, de Carol Badra – e renúncia à sedução do público através do deslumbramento estético – a exemplo da iluminação de Marcel Alani, que contribui decisivamente para a comédia na brincadeira com a passagem da noite para o dia e encerra o espetáculo de modo expressivo. Por meio da redução dos objetos de cena, restritos ao necessário, e da valorização dos atores, Ordinários presta uma homenagem ao teatro, sublinhada no encaminhamento da situação na parte final da apresentação.
Alvaro Assad mantém esse espírito de síntese, o que confere ao todo uma unidade que minimiza a já discreta diminuição na voltagem de humor quando a montagem se alonga ligeiramente. A sintonia e o entrosamento entre os atores Fernando Paz, Fernando Sampaio e Filipe Bregantim são determinantes para o ótimo resultado. Os três demonstram domínio físico da arte da palhaçaria, sem enveredarem pelo exibicionismo técnico, e da palavra, valendo citar os divertidos momentos em que falam sobre localizações geográficas no mapa. Não há como destacar um dos atores em relação aos demais. Isto não é uma limitação, mas uma prova de integração, reforçada pelas marcações em conjunto.
Montagem que estreou, em São Paulo, em 2018, Ordinários chega ao Rio de Janeiro. É um fato que merece comemoração, apesar do trabalho não ter desembarcado no espaço mais adequado. O Sesc Copacabana conta com uma arena completa que deve ser destinada a espetáculos que aproveitem essa configuração. Não é o caso desse, apresentado no formato meia-lua. Seja como for, a companhia LaMínima aborda, com inventividade, a tragédia e o nonsense da guerra – a última cena, com referência ao campo minado, traz à lembrança, mesmo que em registro suave, o agoniante desfecho de Terra de Ninguém (2001), filme de Danis Tanovic – por meio da mestria corporal dos atores e da quase ausência de didatismo no roteiro dramatúrgico.
Ordinários – Roteiro dramatúrgico de Newton Moreno, Alvaro Assad e companhia LaMínima. Direção de Álvaro Assad. Com Fernando Paz, Fernando Sampaio e Filipe Bregantim. Sesc Copacabana (R. Domingos Ferreira, 160). De qui. a dom. às 20h. Ingressos: R$ 30,00, R$ 15,00 (meia-entrada), R$ 7,50 (associados do Sesc).
Débora Duboc e Renato Borghi em O que nos mantém vivos?, em cartaz até domingo no Espaço Cultural Sergio Porto (Foto: Priscila Prade)
A montagem de O que nos mantém vivos? é norteada tanto pela necessidade de expressão diante de uma fase inflamada da realidade brasileira quanto pelo desejo de prestar homenagem ao ator Renato Borghi. Essa coletânea de textos de Bertolt Brecht, intercalada com depoimentos nos quais os artistas assumem postura cidadã, teve sua primeira encenação, com Borghi e Ester Góes em 1973, auge da ditadura militar, com o título de O que mantém o homem vivo?. O projeto foi retomado em outra ocasião marcante, a da transição do regime ditatorial para a abertura política, em 1982. Décadas depois, em 2019, motivado por instante dramático distinto, Borghi, ao lado de Elcio Nogueira Seixas, revisitou o antigo roteiro dramatúrgico e propôs uma nova versão – a que está em cartaz, até o próximo domingo, no Espaço Cultural Sergio Porto, sob a direção de Rogério Tarifa.
A razão que levou ao resgate de Brecht nesses períodos da história do país – diferentes, mas atravessados por formas diversas de opressão – parece evidente. Brecht foi um artista que rompeu com o ilusionismo teatral por meio de procedimentos de distanciamento cênico com o objetivo de conscientizar o espectador em relação à determinadas problemáticas, incentivando-o, a partir daí, a uma tomada de posição. Brecht não era exatamente contra a fruição ou o envolvimento emocional, mas contanto que o público não assistisse ao espetáculo de maneira alienada e passiva.
Nessa reconfiguração do projeto, os artistas não se afastaram da pergunta do título original, mas operaram sobre ela, tornando-a mais direta e pessoal. Não por acaso, em dado momento da montagem, a indagação é lançada aos espectadores, que, eventualmente, arriscam respostas. Para Renato Borghi, pode-se cogitar, a preservação da vida está ligada à sua extensa trajetória teatral, lembrada no palco, em especial, por meio da evocação do Teatro Oficina, companhia que fundou com José Celso Martinez Corrêa, Amir Haddad e Carlos Queiroz Telles dentro da faculdade de Direito no Largo de São Francisco, em São Paulo, em 1958. Borghi, através dessa encenação de Tarifa, traz à tona fatos emblemáticos na história da companhia, principalmente no que diz respeito à montagem de O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, que estabeleceu uma mudança relevante dentro do Oficina – dos bem-acabados espetáculos concebidos a partir de dramaturgia norte-americana e russa, voltados para a difusão do realismo stanislavskiano, ao Te-Ato, termo que sintetiza uma anulação de fronteiras tradicionais do teatro, a começar pela extinção da separação entre vida e arte.
A inclusão de uma cena de A Vida de Galileu no roteiro de O que nos mantém vivos? é mais um vínculo com o Oficina, tendo em vista que a companhia montou a peça de Brecht no conturbado final dos anos 1960 (Galileu Galilei). A encenação atual também reúne pedaços de Santa Joana dos Matadouros e A Resistível Ascensão de Arturo Ui. Através dessas peças, questões fundamentais ganham destaque – entre elas, o medo da desestabilização decorrente da revelação de uma verdade ameaçadora e perversos modos de exploração da situação de abandono dos menos abastados. As possíveis associações com o aqui/agora não são estimuladas a partir de uma abordagem panfletária.
Entre os fragmentos da obra de Brecht, os artistas dão vazão a depoimentos acerca de experiências vivenciadas no limite e externando indignações referentes ao Brasil de hoje. Renato Borghi fala sobre sua cirurgia no coração, símbolo de seu elo com esse trabalho, em que entrelaça parcerias do passado (com Zé Celso) e do presente (com Elcio Nogueira Seixas, com quem fundou o grupo Teatro Promíscuo). Nem todos os que se encontram em cena possuem função dramática, o que tende a gerar certo grau de estranhamento, mas surgem conectados por laços de afeto e amparo. Borghi está no centro dessa rede de ternura, celebrado por seus 65 anos de carreira que não se resumem à definitiva jornada no Oficina. Pôsteres dispostos ao fundo do palco o identificam em outras ocupações artísticas, como a de autor – de A Estrela Dalva (resultado de sua adesão apaixonada à cantora em dramaturgia formulada com João Elísio Fonseca) e O Lobo de Ray-Ban.
Rogério Tarifa investe numa cena popular, característica sugerida não só na breve interação com a plateia, mas na cenografia – que assina com Luiz André Cherubini (responsável pelos bonecos, suspensos durante grande parte da apresentação) e Andreas Guimarães –, com uma lona e uma carroça, elemento que remete à mais uma peça de Brecht: Mãe Coragem e seus Filhos. Apesar de algum exagero na linha interpretativa adotada junto ao elenco, a montagem conta com passagens intensas, valorizadas, em boa medida, pela direção musical de William Guedes (com composição original de Jonathan Silva). Oscilando entre a incorporação dos personagens brechtianos e a desconstrução da representação nos trechos em que expressam suas vozes de artistas não ocultadas por trás de uma identidade ficcional, os atores – Borghi, Seixas, Débora Duboc, Cristiano Meirelles e Nath Calan – se mostram tão dedicados quanto irregulares, valendo elogiar a atuação contundente e sustentada por apreciável domínio técnico de Duboc.
O que nos mantém vivos? proporciona um justo tributo a capítulos importantes da história do teatro brasileiro e, em particular, a Renato Borghi, além de suscitar articulações entre o contexto do passado e o do presente. A coerência da proposta, mesmo com uma considerável perda de força no segundo ato, é preservada até o fim.
O que nos mantém vivos? – Idealização e adaptação de Renato Borghi e Elcio Nogueira Seixas. Direção de Rogério Tarifa. Com Renato Borghi, Débora Duboc, Elcio Nogueira Seixas, Cristiano Meirelles e Nath Calan. Espaço Cultural Sergio Porto (R. Humaitá, 163). Sex. e sáb., às 19h e dom., às 18h. Ingressos: R$ 80,00 e R$ 40,00 (meia-entrada).
Camila Morgado e Thelmo Fernandes em A Falecida, espetáculo em cartaz no Teatro Copacabana (Foto: Victor Hugo Cecatto)
Na medida do possível, Sérgio Módena vem suprindo uma lacuna no panorama teatral ao se dedicar a montagens de textos clássicos. Depois de Longa Jornada Noite Adentro, de Eugene O’Neill, assina a direção de A Falecida, de Nelson Rodrigues, em cartaz no Teatro Copacabana. Módena caminha na contramão das tendências da cena atual, primordialmente voltada para a valorização de dramaturgias centradas na afirmação de oprimidas vozes identitárias.
Trazer à tona essas vozes até então silenciadas é, sem dúvida, fundamental, ainda mais porque a expressão individual se revela, muitas vezes, representativa de um coletivo massacrado por múltiplas formas de violência. Mas, sem perder de vista o importante comprometimento com uma dramaturgia do aqui/agora, o interesse por montagens de peças já escritas decaiu, nos últimos tempos, de maneira avassaladora. O desapego da vasta literatura dramática – concebida no decorrer dos séculos, tanto brasileira quanto estrangeira – implica em diminuição de diversidade e de oportunidade de fazer o público perceber que vários textos continuam lançando questões que permanecem pertinentes.
A decrescente regularidade de encenações de textos de Nelson Rodrigues evidencia esse quadro. Se nos anos 1990 houve críticas à constância com que suas peças eram levadas ao palco, hoje raras são as iniciativas focadas nesse autor. Entre as razões que influenciam na relativa indiferença por uma dramaturgia pronta, fechada (mas não obrigatoriamente congelada), cabe mencionar dificuldades de produção, considerando os custos para se reunir o número de atores determinado em tantas peças e o temor de que os textos não atraiam uma quantidade de espectadores que minimamente compense o investimento econômico. Além disso, boa parte dos artistas externa uma urgência de falar em primeira pessoa – sem o intermédio de uma dramaturgia escrita por um outro –, de priorizar personagens de si em detrimento de interpretações de figuras ficcionais.
A encenação de um texto como A Falecida é, portanto, um feito que merece comemoração. Essa primeira tragédia carioca de Nelson Rodrigues, um dos melhores exemplares de sua obra, traz desafios, a começar pelo fato de os principais personagens da peça, Zulmira e Tuninho, apesar de casados e pertencentes a um mesmo universo suburbano, existirem em frequências distintas. Não por acaso, a peça os apresenta em ambientes e perspectivas diversos: ela, no encontro com a cartomante, dando início a um anseio mórbido pela própria morte, a ser celebrada num enterro de luxo, símbolo da vingança que articula; ele, com os amigos de sinuca, ansioso pelo jogo de futebol que se aproxima. Zulmira vive cada vez mais desconectada da realidade, enclausurada num mundo impenetrável, com fixação na morte em meio a projeções do impacto causado por seu enterro fantasioso; Tuninho, ao contrário, está atado ao cotidiano, sem qualquer busca por transcendência. Ao longo da peça, eles interagem, mas não se comunicam.
Ao se debruçar sobre esse texto, Sérgio Módena procura transportar para o palco a realidade delirante de Zulmira. A luz localizada na lateral do espaço, que remete a um set de cinema ou publicidade, realça a natureza estilizada de uma montagem que adere ao artifício sem incorrer no meramente postiço. Há uma leve acentuação do humor, com alguma concessão à caricatura, mas sem desvirtuar substancialmente o texto. O diretor se afasta de uma abordagem realista tradicional e sustenta essa característica como linha de encenação. Nesse sentido, existe uma coerência geral norteando o espetáculo.
Falta, porém, a Sérgio Módena uma leitura mais específica da peça, o que não deve ser entendido como necessidade de desconstrução da dramaturgia. Ao invés de reger a montagem a partir de um olhar particular em relação ao texto, Módena parece querer provocar certa estranheza no público através da movimentação dos atores – que, em dados instantes, soa arbitrária – e da inclusão de máscaras, que, juntamente com o coro formado pelos personagens coadjuvantes, sugere um elo com a tragédia, mas que não ganha corpo no palco.
Outras propostas carecem de solidez. O clímax da cena final, com Tuninho num misto de alegria, pela concretização da sua vingança, e tristeza, pela descoberta recente sobre Zulmira, é esvaziado. A criatividade da cenografia de André Cortez, que indica um mausoléu com ladrilhos escuros, fica mais no plano da tentativa que de uma realização esteticamente satisfatória. Há, contudo, criações inspiradas. Os figurinos de Marcelo Olinto trazem sinais do meio sócio-econômico dos personagens, mas sem enveredarem pelo realismo fotográfico, e chamam atenção para o contraste entre tons neutros e a explosão do vermelho. A iluminação de Renato Machado recorta os personagens em momentos relevantes. A trilha sonora de Marcello H. tensiona o real e o imaginário, o subjetivo e o palpável.
É na condução do elenco que Sérgio Módena atinge os melhores resultados. Camila Morgado interpreta Zulmira com intensidade emocional que não uniformiza a personagem. Vale destacar uma passagem: aquela em que Zulmira vê o caixão pela primeira vez e vai até ele em estado de êxtase. A quebra da naturalidade é plenamente preenchida de significado. Thelmo Fernandes projeta com exatidão o acento rodrigueano tanto nas entonações quanto nas intenções. Stela Freitas acumula os papéis da cartomante e da mãe de Zulmira – na primeira procura extrair graça da discrepância entre fingimento e realidade e na segunda alcança contundência em sua última cena. Alcemar Vieira compõe o amante Pimentel na tradição do malandro popular. Gustavo Wabner, Alan Ribeiro e, em especial, Thiago Marinho demonstram empenho e injetam energia na cena.
Nessa montagem de A Falecida, a busca por inventividade nem sempre é amparada por uma base consistente. Ainda assim, a qualidade da peça se impõe, mérito que deve ser creditado, em grau considerável, ao elenco.
A Falecida – Texto de Nelson Rodrigues. Direção de Sérgio Módena. Com Camila Morgado, Thelmo Fernandes, Stela Freitas, Alcemar Vieira, Gustavo Wabner, Thiago Marinho e Alan Rocha. Teatro Copacabana (Av. Nossa Senhora de Copacabana, 261). Sex. e sáb. às 21h e dom. às 20h. Ingressos: de R$ 20,00 a R$ 160,00.
Guida Vianna e Silvia Buarque em A Menina Escorrendo dos Olhos da Mãe (Foto: Nil Caniné)
Registros distintos atravessam a dramaturgia e a encenação de A Menina Escorrendo dos Olhos da Mãe, peça de Daniela Pereira de Carvalho dirigida por Leonardo Netto, atualmente em cartaz no Teatro Poeirinha. O texto evidencia proximidade com a vertente realista por meio de flagrantes de confronto entre mães e filhas, apresentados em linguagem cotidiana. As personagens trazem à tona vivências extremadas, mas facilmente reconhecíveis pelo público, relacionadas à incompreensão, falta de aceitação e incapacidade de lidar com as especificidades alheias. A peça pertence a uma tradição dramatúrgica voltada para o ajuste de contas, filiação perceptível em situações de embate que levam à exposição de verdades até então ocultadas, de fatos que permaneceram interditados durante longo período.
Daniela Pereira de Carvalho relativiza essa linha realista – mas sem se desconectar dela – através de arroubos poéticos que irrompem em dados instantes, particularmente nos de breve narração, e de um corte seco na transição entre as duas partes bem definidas dentro do texto. Essas partes, localizadas em épocas variadas, são interligadas pelos elos familiares entre personagens femininas de gerações diversas, portadoras de visões de mundo divergentes. Entre elas despontam conflitos e tentativas de estabelecer ou ressuscitar vínculos afetivos. Há referência a uma outra camada de tempo, anterior às ações da peça e evocada por meio de palavras, que remete à juventude desestabilizada de uma das personagens.
Essa estrutura intencionalmente partida faz com que as atrizes – Guida Vianna e Silvia Buarque – interpretem, cada uma, duas mulheres de uma família. A ideia de ter as mesmas atrizes em personagens diferentes, apesar de essa mudança não ocorrer dentro de um único segmento do texto, é mais um elemento que suaviza – sem, contudo, anular – a adesão da peça à gramática realista.
Seja como for, a interação entre as personagens, ainda que considerando a excepcionalidade dos acontecimentos descortinados, está atrelada à fala do dia a dia. A concepção estética do espetáculo parece caminhar separadamente da peça. Ronald Teixeira propõe uma ambientação, bonita em si, distante da esfera cotidiana que marca o enfrentamento entre as personagens. A espacialidade – tomada por janelas e portas suspensas, folhas secas e malas (essas últimas, aliás, traduções imagéticas recorrentes em abordagens ligadas à passagem do tempo) – tende a seduzir a plateia, acomodada nas laterais do Teatro Poeirinha, com a cena disposta no centro.
A criação visual de uma montagem não precisa necessariamente obedecer às indicações da peça e nem deve se limitar a ser uma reprodução fidedigna desta. Em A Menina Escorrendo dos Olhos da Mãe, porém, a cenografia e os figurinos (a cargo de Ronald) dão a impressão de terem sido pensados para gerar não uma fricção, um atrito, e sim um certo efeito de contraste em relação à peça. Os figurinos (em especial, o usado por Guida Vianna na primeira parte) se impõem no espetáculo ao invés de se integrarem ao todo de maneira orgânica.
Leonardo Netto não resolveu esse descompasso, o que torna a encenação desagregada. Mas o diretor se mostra habilidoso na condução das atrizes. Guida Vianna, atriz de voz contundente e construções físicas realçadas, alcança notável interiorização, principalmente na segunda parte do espetáculo, quando projeta a ansiedade e a angústia da mãe, a carga de não-dito, por meio de olhar lancinante. Silvia Buarque dá vazão à agressividade e à receptividade das filhas em cada uma das partes sem incorrer em oposições reducionistas.
A Menina Escorrendo dos Olhos da Mãe é um espetáculo movido pelo desejo de surpreender a plateia, a julgar por uma assinatura estética envolvente, mas algo arbitrária, e por uma história que esconde um segredo, mas antecipado pelo espectador antes da revelação. Há, em todo caso, momentos em que Daniela Pereira de Carvalho transmite as experiências dolorosas que assombram as personagens através de poética delicada. O título da peça sinaliza essa qualidade, também presente em proposições artísticas, a exemplo das sutis gradações da iluminação de Paulo Cesar Medeiros, que compõem o espetáculo.
A Menina Escorrendo dos Olhos da Mãe – Texto de Daniela Pereira de Carvalho. Direção de Leonardo Netto. Com Guida Vianna e Silvia Buarque. Teatro Poeirinha (R. São João Batista, 104). De qui. a sáb. às 20h, dom. às 19h. Ingressos: R$ 80,00 e R$ 40,00 (meia-entrada).
Andréa Beltrão e Chico BF em Lady Tempestade, encenação em cartaz no Teatro Poeira (Foto: Felipe Ovelha)
Andréa Beltrão surge como atriz que constrói personagens e, ao mesmo tempo, como intérprete desarmada diante do público que a assiste em Lady Tempestade, encenação sobre a jornada da destemida advogada Mércia Albuquerque, que defendeu presos políticos durante os anos do regime militar no Brasil, principalmente em 1973 e 1974.
No palco do Teatro Poeira, Andréa interpreta uma personagem da realidade, a mencionada Mércia, por meio de recursos físicos e vocais, incluindo a “reprodução” do sotaque da advogada pernambucana. Andréa se move com agitação febril, transmitindo a determinação de Mércia através de palavras que se tornam corporificadas.
Além de Mércia, Andréa se desdobra em outras personagens, em especial A., a mulher que recebe os diários de Mércia e “se relaciona” com os relatos em estado de angústia ativa. Andréa atua, sugere um gosto por pinceladas de composição de uma variedade de personagens, sem, porém, enveredar por uma histriônica exibição de versatilidade. Toda a criação exterior é preenchida pela interiorização de Mércia.
Andréa concilia a estilização de uma atuação não confinada nos limites do corpo cotidiano com uma postura transparente, que se manifesta na breve interação com o público logo antes da apresentação efetivamente começar e nos instantes em que, sem assumir a primeira pessoa ou uma perspectiva militante, demonstra conexão com as questões abordadas num espetáculo que articula a realidade concreta como a dimensão poética.
No momento mais sensível da montagem, Andréa se distancia dos mecanismos de representação para descrever o mar como coração do mundo. A instigante cenografia de Dina Salém Levy, que cobre a cena com um azul marinho uniforme, remete ao mar, mas não como espaço a ser contemplado em sua beleza e imensidão, e sim como natureza gasta, desbotada, que esconde o proibido, o censurado, os corpos dos desaparecidos. Um mar que precisa ser rasgado para que a verdade venha à tona, conforme faz Andréa no final de inegável impacto. A renúncia ao belo transparece ainda na iluminação de Sarah Salgado e Ricardo Vivian, de tonalidade melancólica.
Há, em Lady Tempestade, movimentos de abertura – da realidade palpável para a subjetividade e do passado recente para a atualidade. Na dramaturgia, Silvia Gomez frisa o contexto de interdições da ditadura militar na primeira metade dos anos 1970, mas propõe uma conjugação entre diferentes períodos históricos, da década de 1960 aos dias de hoje. Sem perder de vista a trajetória de Mércia numa época e numa região específicas do país, Silvia Gomez amplia o foco para realçar a perpetuação da violência.
Um ponto particularmente dramático ganha destaque no texto: a tragédia das mães diante do desaparecimento e do assassinato dos filhos. Não por acaso, Andréa está em cena ao lado do filho, Francisco (Chico BF) – que interage de modo discreto com a mãe/atriz e faz a operação da trilha sonora no palco. As iniciais de nomes dos personagens – A. e F. – são as mesmas de Andréa e Francisco, o que favorece o entrelaçamento de realidade e ficção.
A contundência emocional contida na evocação da luta de Mércia é, em certo grau, desidratada por Silvia Gomez no texto e por Yara de Novaes na direção. A constante fusão entre planos distintos, o acúmulo de personagens e funções (a vivência e a narração) por uma única atriz e a inserção de signos recorrentes no teatro contemporâneo (como o microfone) afastam a possibilidade de uma relação ilusionista com a cena e tendem a esfriar a apreciação do espectador. A valorização da estrutura, intencionalmente à mostra, e a sobrecarga de elementos fazem com que a montagem fique algo cerebral. É uma opção discutível – pela provável perda de envolvimento do público – e, por outro lado, defensável – pela não adesão ao melodramático. Seja como for, o incômodo suscitado no espetáculo (sensação sublinhada pelos sons de agonia que ocasionalmente invadem a cena) evidencia coragem.
Lady Tempestade traz o oculto e o desvelado reunidos no refinado trabalho de Andréa Beltrão, que expressa sinceridade e comprometimento tanto ao fazer uso de procedimentos de representação quanto ao abdicar deles num ato de revelação.
Lady Tempestade – Texto de Silvia Gomez. Direção de Yara de Novaes. Com Andréa Beltrão. Teatro Poeira (R. São João Batista, 104). De qui. a sáb. às 21h, dom., às 19h. Ingressos: R$ 100,00 e R$ 50,00 (meia-entrada).
Miriam Mehler, Bruno Fagundes e André Torquato em A Herança (Foto: Gisela Schlogel)
Matthew López fez de A Herança um texto estruturado sobre acúmulos ao entrelaçar as jornadas amorosas de alguns personagens, distribuídos por uma variedade de ambientes, em meio a evocações do passado e projeções de futuro. Materializar no palco essa sucessão de tempos e lugares se constitui como um considerável desafio da encenação dessa peça extensa, dividida em duas partes, ambas apresentadas, alternadamente, no decorrer da rápida temporada no Rio de Janeiro, que termina domingo, no Teatro Clara Nunes.
Diante de todo esse somatório, Zé Henrique de Paula, diretor da montagem, optou pela subtração. A cena sintética, marcada pela quase ausência de elementos, estimula o espectador a imaginar as locações por onde os personagens transitam – os amplos apartamentos de Nova York e a casa de campo (a “casa curativa”) que remete diretamente a Howards End, propriedade central do romance de E.M. Forster, a principal referência de López na escrita de A Herança.
A opção pela redução pode ser constatada na cenografia do espetáculo (a cargo de Zé Henrique), basicamente limitada a um fundo de madeira clara, objetos básicos, cotidianos e utilitários e araras com figurinos dispostos. Por trás do cenário, o público vê as engrenagens do espaço do teatro. Essa exposição dos bastidores realça o ato teatral como construção. Nesse sentido, a cena se evidencia como tal diante do espectador, ao invés de ser ocultada para transmitir a sensação de vida verdadeira, não representada.
Essa concepção está sintonizada com o texto de López, que tematiza a obra em processo. Além de mostrar as intrincadas histórias conjugais dos personagens, de revelá-los por meio de seus percursos afetivos, o autor destaca a criação dramatúrgica em si e faz menções diretas a E.M. Forster. O escritor, inclusive, aparece como personagem e a cena se divide entre narração e vivência dos acontecimentos.
Mesmo que essa esfera da criação dramatúrgica pudesse ter sido inserida de forma um pouco mais orgânica dentro do texto, o aproveitamento do universo de Forster é bastante saboroso. Há citações a livros como Maurice e Uma Janela para o Amor, mas a conexão mais forte se dá com Howards End – obras transportadas para o cinema por James Ivory.
Em relação a Howards End, López mudou o contexto histórico e o sexo dos personagens, concentrando-se mais no vínculo estabelecido entre Henry e Margaret (identidade alterada, em A Herança, para Eric). Existem outras correspondências como entre o personagem que faz com que Henry se sinta ameaçado – Jackie (no filme) e Leo (na peça). Mais importante do que essas eventuais associações, porém, é a mescla de períodos históricos – a revolta de Stonewall em 1969, a epidemia da Aids nos anos 1980, a disputa eleitoral entre Hillary Clinton e Donald Trump em 2016 –, devidamente conjugados com as trajetórias individuais. Essas articulações aproximam A Herança, em certa medida, de Angels in America, de Tony Kushner.
Na parte em que traz à tona a disputa Clinton/Trump, pertencente ao passado recente, López expõe o confronto entre diferentes posturas ideológicas, suscitando analogia com as polarizações de hoje. Mas o maior mérito do texto não parece residir nessa ligação ou no envolvimento provocado por um formato de peça que tangencia o novelão, e sim na apresentação de distintas possibilidades de administração de experiências sofridas, de heranças ruins. Enquanto personagens sucumbem diante da dificuldade de lidar com traumas, outros adquirem condição psicológica para superar um conjunto de adversidades.
Bruno Fagundes e Marco Antônio Pâmio: elenco em sintonia (Foto: Jonatas Marques)
Fora do campo temático, López oferece oportunidades aos atores, seja na contracena, seja, em especial, nos solilóquios. O solo mais marcante é o de Marco Antônio Pâmio na primeira parte de A Herança. Tanto como Forster quanto como Walter – personagens que, de modos diversos, destoam do restante, o primeiro por se tratar de uma figura real, ainda que integrada dentro da narrativa, e o segundo, por causa da faixa etária –, Pâmio domina a palavra com maestria.
Os demais atores demonstram entrosamento com a linha da encenação. Rafael Primot concilia com habilidade agitação física e contundência verbal. André Torquato evita a oposição esquemática nas composições de dois personagens de origens sociais contrastantes. Bruno Fagundes imprime uma dose de suavidade ao rapaz que descobre na ajuda ao outro uma motivação de vida. Reynaldo Gianecchini, apesar da rigidez corporal, projeta as ambiguidades de um personagem permanentemente defendido em relação à intimidade no contato humano. Felipe Hintze fica encarregado dos momentos de humor mais abertos, expansivos. Em participação no segundo espetáculo, Miriam Mehler investe em atuação próxima ao emocional, registro que a atriz exerce de maneira fluente. Davi Tápias, Haroldo Miklos, Gabriel Lodi, Cleomácio Inácio, Rafael Américo e Wallace Mendes têm funções mais episódicas, com mais chances na segunda parte do que na primeira.
O caráter discreto e, ao mesmo tempo, propositivo da direção de Zé Henrique de Paula se estende à iluminação, com sutis gradações, de Fran Barros e Túlio Pezzoni, e à trilha sonora de Fernanda Maia. Responsável pelos figurinos, Fábio Namatame distingue os personagens: os jovens ganham um perfil descolado, ao passo que Forster/Walter surge austero – e entre os dois extremos se encontra a elegância informal de Henry.
Encenar uma peça caudalosa como A Herança é, nos dias de hoje, um feito raro e, sem dúvida, corajoso. Contando com um elenco afinado, capaz de valorizar a palavra, Zé Henrique de Paula prioriza a sugestão de imagens em detrimento da concretização delas em cima do palco.
A Herança – Texto de Matthew López. Direção de Zé Henrique de Paula. Com Bruno Fagundes, Reynaldo Gianecchini, Miriam Mehler, Marco Antônio Pâmio, Rafael Primot, André Torquato, Felipe Hintze, Davi Tápias, Haroldo Miklos, Gabriel Lodi, Cleomácio Inácio, Rafael Américo e Wallace Mendes. Teatro Clara Nunes (R. Marquês de São Vicente, 52 / 3º andar). Sáb., às 20h e dom., às 19h. Ingressos: de R$ 50,00 a R$ 130,00.