Shakespeare com os habituais traços da cena contemporânea

Dan Stulbach interpreta Shylock na montagem de O Mercador de Veneza (Foto: Ronaldo Gutierrez)
A decisão de encenar O Mercador de Veneza, peça de William Shakespeare, pode ser analisada a partir de diferentes perspectivas. Por um lado, significa a aposta na dramaturgia clássica, que vem sendo pouco valorizada na temporada teatral do Rio de Janeiro. Por outro, a escolha desse texto num momento de aumento do antissemitismo no mundo gera certa perplexidade, apesar de não haver um consenso em torno da percepção do judeu Shylock como vilão e dos pontos de vista distintos sobre o personagem eventualmente suscitarem debates instigantes.
Em comparação com o retrato do judeu traçado em O Judeu de Malta, peça de Christopher Marlowe que serviu de possível fonte de inspiração para a criação de O Mercador de Veneza, Shakespeare humaniza uma figura como Shylock. Determinado a cobrar uma dívida por meio da extração de uma libra de carne, em região perto do coração, do corpo do mercador Antônio, o comerciante Shylock justifica sua atitude como reação à discriminação que sempre sofreu dos cristãos – em especial, de Antônio e daqueles que o rodeiam. Há o famoso solilóquio de defesa de Shylock, que argumenta, com admirável lucidez, que o judeu é em tudo igual aos demais indivíduos. E essa nova montagem, em cartaz no Teatro Nelson Rodrigues – Caixa Cultural, frisa a segregação contra o judeu através de breves projeções de bocas acusatórias. Mesmo assim, parece difícil deslocar Shylock da posição de antagonista, considerando a forma como a história é contada e a concepção dos personagens: como sentir empatia diante do inflexível Shylock, que cobra a dívida de um modo que provavelmente acarretará a morte de Antônio, por sua vez apresentado com bastante simpatia?
A encenação de Daniela Stirbulov transporta a ação da peça de Shakespeare para o presente ou passado próximo, mas não envereda por articulações diretas com a guerra no Oriente Médio. A diretora prioriza outra conexão ao ambientar a história no meio empresarial, com projeções que remetem ao universo da bolsa de valores, elo realçado na cenografia de Carmem Guerra. Integrados a esse contexto, os figurinos de Allan Ferc privilegiam cores neutras que contrastam com as tonalidades intensas da iluminação de Wagner Pinto e Gabriel Greghi. Entretanto, o destaque à ideologia capitalista se impõe como pista falsa. Afinal, conforme sublinhado na peça em diversos instantes, o que move a cobrança de Shylock não é o dinheiro, e sim a vingança pelas inúmeras manifestações de preconceito religioso ao longo do tempo. Talvez o objetivo tenha sido evidenciar a insuficiência do dinheiro na resolução de toda e qualquer situação, principalmente aquelas ligadas à anulação de identidades.
Mas, diante da relativa fragilidade dessa proposta de leitura da peça, os elementos que constituem a montagem ficam, em boa parte, reduzidos a uma afirmação de sintonia com signos do teatro contemporâneo, identificáveis no aparato multimídia (acrescido da dispensável inserção de um videomaker no palco), na música ao vivo e na inclusão de refletores de estúdio. Muitos desses procedimentos quebram com a apreciação ilusionista da cena ao deixarem à mostra as engrenagens do teatro e a estruturação do espetáculo. Soa singular, mas é uma linguagem recorrente em montagens recentes.
Responsável pela tradução e adaptação da peça, Bruno Cavalcanti investe em operações dramatúrgicas que abordam a sexualidade como território mais amplo do que categorizações pré-estabelecidas e pontuam a história com referências ao mundo pop. A despeito da inclusão de conteúdos importantes – somados à tenacidade das mulheres numa sociedade que as oprime, questão que vem à tona através da postura impetuosa das personagens e da troca de identidades, recurso comum nas comédias de Shakespeare –, a atualização temática dá a impressão de decorrer mais de um desejo de aproximar, de maneira artificial, o texto original do espectador do século XXI do que de uma análise verticalizada da peça.
A tendência à exteriorização surge ainda no registro interpretativo. Dan Stulbach, apesar de acentuar o trabalho de composição (flagrante na voz), dimensiona a intransigência e a indignação de Shylock. Augusto Pompeo imprime autoridade ao Duque. Cesar Baccan sobrecarrega a expressão na cena do julgamento de Antônio, mesmo levando em conta a extrema tensão do personagem nesse clímax da peça. Quase todos os integrantes do elenco têm atuações que, diante da necessidade de ressaltar o potencial comunicativo e popular do texto, resultam uniformizadas numa linha de exagero.
A encenação de O Mercador de Veneza é norteada pelo esforço em proporcionar um diálogo entre a peça de Shakespeare e os dias de hoje, sem, porém, explicitar analogias. A escolha desse texto na conjuntura do aqui/agora é discutível. Mas, independentemente da peça, a proposição artística fica limitada, em grau considerável, à reunião de componentes cênicos habituais em tantos espetáculos.
O MERCADOR DE VENEZA – Texto de William Shakespeare. Direção de Daniela Stirbulov. Com Dan Stulbach, Augusto Pompeo, Amaurih Oliveira, Cesar Baccan, Gabriela Westphal, Júnior Cabral, Marcelo Diaz, Marcelo Ullmann, Marisol Marcondes, Rebeca Oliveira, Renato Caldas e Thiago Sak. Teatro Nelson Rodrigues – Caixa Cultural (Av. República do Paraguai, 230). Qui., às 19h, sex., às 20h, sáb. e dom., às 18h. Ingressos: R$ 40,00 e R$ 20,00 (plateia), R$ 30,00 e R$ 15,00 (balcão).