Cena de Estudo nº1: vida e morte, espetáculo do grupo Magiluth (Foto: Lina Sumizono)
CURITIBA – Poema dramático de João Cabral de Melo Neto, Morte e Vida Severina atravessa o tempo na encenação apresentada pelo Grupo Magiluth na última edição do Festival de Curitiba. A partir da apropriação que realizaram do texto original, os integrantes tocam em questões atuais, como a realidade contrastante entre aqueles que morrem de fome e de sede e os que lucram cada vez mais – integrantes de mundos opostos simbolizados, em cena, respectivamente pelas tonalidades amarela e azul -, a crescente uberização do trabalho e as descrições estereotipadas dos nordestinos.
A companhia também transcende fronteiras pré-determinadas. Nordestino deixa de ser uma condição geográfica. No espetáculo dirigido por Luiz Fernando Marques, a designação diz respeito ao conjunto de oprimidos, de migrantes que não encontram um lugar de existência possível, de invisibilizados por um sistema perverso. O nordestino é como um marciano deslocado num planeta dominado por uma lógica de funcionamento patronal e retrógrada. Os anos passam, mas a desigualdade e a exclusão seguem sendo perpetuadas. Não por acaso há, na encenação, uma estrutura que se repete, uma narrativa que constantemente recomeça.
O Grupo Magiluth evidencia, por meio do discurso político e ideológico, um vigor militante que imprime um tom de certeza, característica que, em alguma medida, atrita com a inconclusão sugerida pela palavra estudo, estampada no título do espetáculo. O caráter processual, próprio do estudo, aparece mais na estrutura de uma montagem que satiriza os signos recorrentes da cena contemporânea – como a presença de microfones, só para mencionar um dos elementos. A abordagem, porém, é mais próxima da brincadeira do que da crítica.
Em todo caso, Estudo nº1: vida e morte se inscreve no panorama contemporâneo, marcado tanto pela exposição de processos – por meio da apresentação de trabalhos ainda em estágio de ensaio, integrando, em especial, a programação de festivais de teatro – quanto por montagens, como é o caso dessa do Magiluth, que intencionalmente colocam o público diante de uma cena com aparência de esboço, distante do acabamento clássico do espetáculo bem feito. A sensação que normalmente reverbera no espectador é a de estar diante de algo pulsante, não cristalizado.
A esse espetáculo parece faltar o estado de dúvida, importante no percurso de um estudo, de uma pesquisa. Os atores – Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Lucas Torres e Mário Sergio – assumem uma postura bastante contundente, realçada pela potência das vozes. Seja como for, dificilmente o espectador sairá indiferente do teatro.
Marcos Luiz Maciel e Edson Bueno em Mona Lisa Vs. Adolph Hitler (Foto: Lina Sumizono)
CURITIBA – Uma montagem como a de Mona Lisa Vs. Adolph Hitler – apresentada na Mostra Lúcia Camargo da atual edição do Festival de Curitiba – preenche uma lacuna importante no atual panorama do teatro brasileiro. Essa lacuna diz respeito ao teatro de mercado, vertente a qual esse espetáculo pertence, que sofreu considerável encolhimento nas últimas décadas. Com o investimento decrescente na dramaturgia, o teatro de mercado se concentrou, cada vez mais, em torno do musical – ainda que não se deva negar o lugar do texto dentro do musical. O fato é que, nas últimas décadas, o teatro vem perdendo a sua dimensão pública. Muitos espectadores não especializados se distanciaram, talvez por não se sentirem representados em meio à maioria dos espetáculos em cartaz.
Vale lembrar que o teatro de texto, tradicionalmente classificado como obsoleto, representou o novo no momento inaugural do teatro brasileiro moderno, a partir da segunda metade da década de 1940. Antes dessa época, o teatro profissional era voltado para o brilho do primeiro ator, que, valendo-se de sua personalidade carismática, aproximava os personagens de seu próprio perfil e improvisava a partir do texto com o intuito de estabelecer um elo imediato, por meio do riso, com o espectador.
A implantação do teatro moderno no Brasil foi uma decorrência de um percurso trilhado pelos grupos amadores que, do final dos anos 1930 em diante, começaram a valorizar a peça clássica (Romeu e Julieta e Hamlet, em diferentes momentos do Teatro do Estudante do Brasil) e uma dramaturgia singular, inovadora na estrutura (Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, na revolucionária encenação do grupo Os Comediantes), desconectando-se da linha habitual da comédia de costumes. O movimento amador também se fortaleceu graças aos coletivos de São Paulo (Grupo de Teatro Experimental, Grupo Universitário de Teatro), cujas montagens pautaram a programação inicial do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), companhia que marcou o começo do teatro brasileiro moderno juntamente com o Teatro Popular de Arte (TPA), este fundado no Rio de Janeiro, ambos surgidos em 1948.
A chegada de encenadores estrangeiros ao Brasil, antes, durante e depois da Segunda Guerra Mundial, foi determinante para a realização de mudanças na esfera profissional. De certa maneira, o desembarque do diretor estrangeiro – e tudo aquilo que imprimiu em termos de assinatura na cena – surgiu no grupo amador, a julgar pela condução de Ziembinski para Vestido de Noiva, em 1943. Mas os estrangeiros se estabeleceram, sobretudo, nas grandes companhias empresariadas, principalmente o TBC, onde realizaram encenações pautadas por um equilíbrio delicado entre a liberdade autoral do diretor e a fidelidade ao texto, minuciosamente estudado.
No decorrer do tempo, a percepção em relação ao trabalho com o texto mudou. Os artistas, em especial a partir do início dos anos 1970, sinalizaram uma transição: perceberam que cabia mais se servir do texto do que servir a ele e priorizaram o corpo em detrimento do verbo. A necessidade de imprimir uma expressão pessoal através do texto e a determinação em buscar um material oculto, para além de uma camada interpretativa já evidente no instante da leitura, levaram a uma tendência de dessacralizar a obra. O texto de teatro, como elemento encerrado em si, deixou de ser valorizado. Mas, se na segunda metade do século XX uma cena destituída de operações dramatúrgicas ousadas em relação à peça passou a ser considerada como ultrapassada, hoje o teatro de texto puro e simples talvez volte a soar não exatamente como algo novo, mas como uma novidade, tendo em vista a pouca constância com que é praticado nos palcos brasileiros.
Montagem do Grupo Delírio, Mona Lisa Vs. Adolph Hitler coloca o público diante de uma moldura tradicional. O cenário de Robysom Souza contextualiza o espaço – a sala de um general – onde a ação se desenrola. Os figurinos de Áldice Lopes localizam os personagens de acordo com os postos hierárquicos que ocupam. As duas figuras centrais do texto – um general e um diplomata, que travam embate diante da ordem de Adolph Hitler de destruir Paris no final da Segunda Guerra Mundial – seguem um arco dramático conhecido. Os dois são colocados em lados opostos do conflito (oposição sintetizada no próprio título da peça) e um tenta convencer o outro, aparentemente irredutível, a não praticar uma ação despótica e genocida e se deixar sensibilizar pela arte. O processo de humanização de um personagem resistente já povoou diversos textos, não se impondo, portanto, pela originalidade.
A base da encenação dirigida por Edson Bueno reside na valorização da palavra e do trabalho do ator, características que normalmente traduzem um teatro “puro”, “essencial”, que não aposta numa visualidade dispersiva e concebida tão-somente para agradar as retinas dos espectadores. Nessa proposta de teatro, a maior parte da responsabilidade repousa sobre os atores. Edgard Assumpção demonstra fluência em sua pequena participação. Edson Bueno, no papel do diplomata, realça a característica persuasiva do personagem evidenciando pleno domínio do texto. Marcos Luiz Maciel, como o general, imprime menos colorido em atuação uniformizada.
Em todo caso, há certas especificidades que, apesar de não afastarem a montagem de um formato “de época”, distanciam o resultado do convencionalismo. O embate entre os personagens ocorre num único espaço fechado, mas há não só constantes menções ao espaço aberto (a cidade de Paris) como à estrutura “vazada” da sala do general, um local onde não existe privacidade dadas as diversas e desconhecidas possibilidades de acesso. O texto, apesar da estrutura facilmente reconhecível, resultou de uma adaptação, a cargo do próprio Edson Bueno, tendo como base os filmes Paris está em Chamas? (1966), de René Clement, e Diplomacia (2014), de Volker Schlöndorff. E a iluminação de Beto Bruel, repleta de tonalidades quentes, potencializa, de maneira particularmente expressiva, o espaço cenográfico.
Mona Lisa Vs. Adolph Hitler é uma montagem que propõe, com certa modéstia, uma relação mais direta com o espectador a partir do contato com uma dada verborragia. Presta uma contribuição louvável ao ocupar um lugar vago no atual panorama teatral. O resultado tende a ser, quase inevitavelmente, classificado como bem-comportado. Mas as definições de antiquado e inovador são mais enganosas do que parecem à primeira vista. Edson Bueno transporta para o palco, com algum frescor, um determinado mundo, afastando-se, desse modo, de uma abordagem meramente burocrática e destituída de vida.
O espaço teatral do Campo das Artes, iniciativa do ator Luis Melo, localizado em São Luís do Purunã (Foto: Eduardo Macarios)
CURITIBA – O Festival de Teatro de Curitiba celebra seus 30 anos de existência de uma maneira bastante especial: por meio do retorno das atividades presenciais após dois anos de pandemia. Até o próximo dia 10, o público assiste a espetáculos e acompanha debates e lançamentos de livros, atrações que imprimem a efervescência característica da capital paranaense durante o período do festival.
É verdade que o festival ainda não voltou com a mesma configuração de antes da pandemia. Nessa nova edição não há o Fringe, habitual mostra paralela composta por centenas de espetáculos incluídos na programação por ordem de inscrição, sem seleção prévia. Não se pode esquecer, porém, que nos anos imediatamente anteriores à pandemia o Fringe também passou a contar com curadorias internas, direcionando, em alguma medida, o espectador, muitas vezes perdido em meio à quantidade de ofertas.
Mas o festival, dirigido por Leandro Knopfholz e Fabíula Bona Passini, traz novidades fundamentais. Possivelmente a mais importante é a Mostra Pôr do Sol, composta por espetáculos de companhias de Curitiba – Ave Lola, Súbita Companhia e Cia. Ilimitada. Mais do que as montagens em si, o grande feito reside no local onde são apresentados: o Campo das Artes, espaço com 164 mil metros quadrados criado pelo ator Luís Melo, em São Luís do Purunã, região rural a cerca de uma hora de Curitiba, que conta com teatro, refeitório e alojamento. A grande estrutura concebida por Melo se destina à apresentação de espetáculos e à realização de oficinas, de modo a proporcionar um intercâmbio artístico entre coletivos diversos. Há o desejo de estreitar o vínculo com moradores da região, objetivo que já vem sendo concretizado através, por exemplo, de uma programação voltada para a plateia infanto-juvenil. O Campo das Artes é certamente uma aposta corajosa no futuro.
A localização, distanciada do centro urbano, a configuração espacial – o teatro tem disposição móvel, variando conforme a natureza do trabalho – e a inquietação artística que atravessa o projeto como um todo lembram, mesmo que ao longe, a Cartoucherie, sede do Théâtre du Soleil, companhia conduzida por Ariane Mnouchkine desde 1964 e sediada nos arredores de Paris desde 1970. Pode-se evocar também a iniciativa de Paschoal Carlos Magno relativa à Aldeia de Arcozelo, que, na década de 1960, não mediu esforços para criar um centro cultural em Paty do Alferes (RJ). Vale lembrar que Luís Melo já esteve à frente de outra empreitada dedicada às artes: o Ateliê de Criação Teatral (ACT), espaço bucólico no qual o público assistiu a trabalhos de caráter autoral e investigativo em edições anteriores do festival.
Cão Vadio, encenação da companhia Ave Lola (Foto: Dayana Jacqueline)
Essa 30ª edição conta ainda com a Mostra Ave Lola, que chega à sexta edição, reunindo espetáculos, leituras dramáticas, debates e oficinas. Entre as encenações está Cão Vadio. O título faz menção ao território que recebe personagens expatriados, sem lugar no mundo. Nessa montagem, dirigida por Ana Rosa Tezza, à frente do grupo, há tributo ao teatro e à literatura através da configuração especial (os camarins cenográficos localizados nas extremidades do palco), da valorização de uma estrutura narrativa e de referências assumidas (a peças como Hamlet, de William Shakespeare, e a livros como Cem Anos de Solidão e A Triste e Incrível História de Candida Erendira e sua Avó Desalmada, ambos de Gabriel García Marquez). Personagens como Aureliano e Erendira saltam das páginas dos livros para o palco. No jogo de metalinguagem proposto na dramaturgia, também a cargo de Ana Rosa Tezza, os integrantes do elenco dessa montagem fazem atores que interpretam personagens durante o período de ensaio de um espetáculo. Trata-se, portanto, da apresentação de uma encenação em processo, inacabada, característica que aparece refletida nos figurinos pela metade. As engrenagens teatrais são intencionalmente expostas nas cenas em que os intérpretes se descolam dos personagens e assumem as identidades de atores de uma montagem em estágio de preparação e na assumida estilização que se manifesta nas máscaras bem evidenciadas e nos adereços (bonecos, valendo destacar o do ancião). Essa evidenciação do teatral reforça, ao invés de dissolver, o encanto lúdico de uma arte marcadamente artesanal como o teatro.
Outro trabalho instigante inserido na programação paralela do festival é Derrota, resultado da parceria entre o coletivo Projeto Gompa e a Cia. Incomodete, apresentado no teatro da Biblioteca Pública do Paraná. Sob a direção de Camila Bauer, a atriz Liane Venturella realiza breve experimento a partir do texto de Dimitris Dimitriádis. A estrutura intencionalmente repetitiva do texto, a reduzida movimentação da atriz e fala também propositalmente destituída de inflexões variadas exercem efeito hipnótico sobre o espectador, tragado para dentro do trabalho por uma via sensorial. Ainda fora da Mostra Oficial há diversas iniciativas reunidas na palavra Interlocuções: oficinas, palestras, debates e lançamentos de livros – entre eles, Tempos de Viver e de Contar, publicação comemorativa dos 40 anos do Grupo Galpão.
A tradicional Mostra Oficial ganhou o nome de Lucia Camargo, uma justa homenagem à ex-curadora do festival que morreu em 2020. Parte dos espetáculos diz diretamente respeito à história do festival, na medida em que foram apresentados com sucesso em edições anteriores. São os casos de Conselho de Classe, montagem da Cia. dos Atores para a peça de Jô Bilac, O Casamento, trabalho da Cia. os Fodidos Privilegiados a partir do folhetim de Nelson Rodrigues, Parlapatões Revistam Angeli, do grupo Os Parlapatões, e Till, a Saga de um Herói Torto, texto de Luís Alberto de Abreu, encenação do Grupo Galpão. Também lembrando os 30 anos do Festival de Curitiba, a exposição de fotos de espetáculos do acervo de Lenise Pinheiro, parte delas exposta no Museu Oscar Niemeyer, que acompanhou o evento desde o início como fotógrafa do jornal Folha de S.Paulo.
As Cangaceiras – Guerreiras do Sertão, montagem de Sergio Módena para o texto de Newton Moreno (Foto: Priscila Prade)
A dramaturgia de As Cangaceiras – Guerreiras do Sertão, assinada por Newton Moreno, oscila entre o derramamento do melodrama e a concentração da tragédia. Como no melodrama, as personagens manifestam emoções pungentes em jornadas marcadas pelo sofrimento. São mães sacrificadas – uma em busca do filho de quem foi abruptamente separada após o parto, outra na determinação em defender a filha do perigo ao redor e mais uma decidida a vingar a violência do incesto. Os homens surgem, na maioria das vezes, como algozes, como figuras ameaçadoras que, apesar de ocasionalmente dotadas de uma parcela de humanidade, não hesitam em subjugar as mulheres em atos comandados por instintos selvagens. Para completar, a filiação ao melodrama se traduz na súbita revelação de laços familiares entre opressor e oprimido. Já em relação à tragédia, o acontecimento fundamental nas vidas das personagens ocorreu previamente – a separação do filho, o permanente abuso dos homens – e o espectador é informado dos fatos. Não há uma curvatura dramática tradicional, uma apresentação das situações rumo ao clímax, com exceção da cena do reencontro de uma das personagens com o filho, ao final do espetáculo.
Em cartaz até domingo no Teatro Riachuelo, a montagem de As Cangaceiras, dirigida por Sergio Módena, transita por mais gêneros: a comédia, no modo como as personagens – às vezes criadas em registro histriônico – se expressam no cotidiano, ainda que sempre confrontadas com uma dura realidade, e o musical, que atravessa a encenação pontuando tanto as passagens mais extremadas quanto as de certo respiro pela via do humor (direção musical de Fernanda Maia e canções originais de Maia e Moreno). A habilidade em percorrer gêneros variados se reflete no percurso de Newton Moreno, que experimentou a comédia (por meio do singular As Centenárias e do comunicativo Maria do Caritó) e o drama (o estado de perplexidade flagrante em Agreste, a radicalidade do desejo em A Refeição).
Além da diversidade de gêneros, As Cangaceiras traz momentos de quebra, nos quais os personagens falam de frente para a plateia, sugerindo influência brechtiana. A referência a Mãe Coragem e seus Filhos vem à tona, ao longe, principalmente na imagem da mulher que precisa continuar gritando, mesmo sem ter como emitir som. Nesses instantes de quebra se estabelece, de maneira mais explícita, a conexão entre o período histórico do texto e os dias de hoje. Newton Moreno se volta ao passado para sublinhar a luta das mulheres, tiranizadas pelos homens. O cangaço é um símbolo do tratamento inferiorizado relegado a elas, mas o discurso da peça transcende esse contexto. Foi concebido para reverberar no público contemporâneo. Esse movimento do particular para o geral fica evidente num texto que realça as trajetórias de personagens específicas e, por outro lado, voa acima de qualquer individualização ao estimular um elo entre as mulheres de antes e de agora em suas justas reivindicações por liberdade. Moreno também é fiel ao mundo nordestino – como se pode perceber na cenografia (de Marcio Medina) que, sem aderir à reprodução realista, sintetiza, através dos nichos dispostos no palco, a paisagem árida do sertão, e nos figurinos estilizados (de Fabio Namatame), quase todos seguindo um padrão cromático, mas nem por isso destituídos de variações – e, sem abrir mão desse vínculo, ultrapassa fronteiras na abordagem de questões universais.
Em As Cangaceiras, o domínio do autor se soma ao do diretor. Sergio Módena conduz a encenação num fluxo ininterrupto e conta com interpretações de um elenco afinado. Entre os integrantes, Amanda Acosta empresta, à mulher em busca do filho, uma voltagem abertamente emocional, mas sem incorrer em excessos, Luciana Lyra projeta de forma expressiva o descontrole da viúva, Milton Filho envereda por divertida linha caricatural e Vera Zimmermann – destaque do conjunto na primeira metade do espetáculo, quando sua personagem tem mais espaço – imprime contundência à mãe, firme na proteção da filha. Cabe apenas fazer restrição à falta de clareza com que muitas falas ditas pelos atores chegam aos espectadores.
Denzel Washington e Frances McDormand em A Tragédia de Macbeth (Foto: Alison Rosa/A24/Apple TV+)
Um certo contraste entre o nítido e o nebuloso chama atenção em A Tragédia de Macbeth, versão de Joel Coen para a célebre peça de William Shakespeare. Os personagens frequentemente surgem e somem na névoa, recurso estético que realça que há muito de enganoso na diabólica trama impulsionada pelo casal Macbeth, que não hesita em matar para alcançar o poder. As verdadeiras intenções não se manifestam nas palavras, e sim em ações clandestinas, ocultadas, mas não do público, que tem total acesso às motivações dos personagens. Talvez por isso, as imagens do filme também sejam bastante evidentes, a julgar pelos closes em rostos ao longo da projeção – cabe elogiar a bela fotografia em preto e branco de Bruno Delbonnel.
Filmando inteiramente em estúdio, Joel Coen prioriza espaços fechados, mas sem perder de vista a recriação de cenários naturais. Em relação às áreas cobertas sobressai a lembrança das estruturas arquitetônicas das cenografias do suíço Adolphe Appia, que valorizou uma espacialidade favorável ao trabalho do ator, sem os habituais excessos de uma cena realista voltada para o ilusionismo da plateia, e conectada com os avanços da iluminação na metade do século XIX em diante. A Tragédia de Macbeth é um projeto centrado na interface entre teatro e cinema, aproveitando, da primeira forma artística, o uso expressivo de um espaço restrito e o minucioso estudo da peça junto aos atores, e, da segunda, uma orquestração exata de elementos técnicos que adquirem o status de texto na tela, a exemplo da rigorosa partitura sonora que potencializa algumas passagens.
No que se refere à condução dos atores, Joel Coen investe num tom menor, nada grandiloquente, escolha pertinente em se tratando de uma peça que justamente coloca o espectador frente ao movimento do pensamento dos personagens. Há uma ou outra sequência que destoa desse senso de medida, como a do delírio de Macbeth durante o jantar. Não é um problema. Afinal, os momentos pelos quais os protagonistas atravessam não têm o mesmo grau de intensidade. Denzel Washington adere à sutileza, assim como Frances McDormand, que se mostra um pouco acima de seu parceiro de cena e vence o desafio lançado por uma personagem elíptica, que sofre mudanças de estado emocionais abruptas no decorrer da peça e precisa soar verossímil a cada nova aparição. Vale dizer que a presença de atores negros não se limita a Macbeth, estendendo-se também aos escalados para interpretar os integrantes da família Macduff (Corey Hawkins, Moses Ingram, Ethan Hutchison) e Seyton (James Udom).
Em A Tragédia de Macbeth, Joel Coen realiza operações na esfera da dramaturgia – o tratamento destinado às bruxas é um destaque, nesse sentido – e da concepção visual sem, contudo, enveredar por uma desconstrução da peça de Shakespeare. Presta considerável contribuição na visita a um texto transportado com constância para o cinema por diretores diversos – Orson Welles, Akira Kurosawa, Roman Polanski, Justin Kurzel – em abordagens com diferentes níveis de intervenção sobre o material original. O resultado foi contemplado com indicações ao Oscar nas categorias ator, fotografia e direção de arte.
Objetos do cenário da montagem de As Centenárias (Foto: Nil Caniné)
Há 15 anos Marieta Severo e Andréa Beltrão partiram possivelmente para a maior aventura de suas carreiras: ter um teatro próprio. Assim surgiu o Teatro Poeira, nome que remete à tradição do cinema poeira, designação – frisada no minucioso livro de Alice Gonzaga (Palácios e Poeiras) – referente às antigas salas de bairro, de aparência e estrutura bem mais simples que as grandes e lendárias edificações onde os filmes mais concorridos eram exibidos.
Havia riscos evidentes. Desde o início, Marieta e Andréa, sócias na empreitada, sabiam que não seria nada fácil administrar um teatro em meio a um contexto adverso no que diz respeito tanto às especificidades do quadro no Rio de Janeiro quanto à crescente desvalorização do teatro num século XXI enfeitiçado pelos aparatos tecnológicos. Além disso, não escolheram espaços em shoppings, muitas vezes priorizados pelos espectadores devido à comodidade e à segurança oferecidas, mas marcados, com frequência, por programação repleta de apelos para seduzir de imediato uma ampla faixa de público. Caminharam na contramão e se depararam com uma aprazível casa de rua, em Botafogo. Como se não bastasse, anos depois adquiriram a casa ao lado inaugurando um novo teatro: o Poeirinha.
O Poeira não despontou como um espaço para servir “apenas” de veículo para Marieta Severo e Andréa Beltrão. Elas, claro, vêm realizando espetáculos no teatro, ora em separado (Marieta em Incêndios, Andréa em Jacinta e Antígona), ora juntas (Sonata de Outono, a primeira montagem, e As Centenárias). Mas o Poeira e o Poeirinha logo ganharam destaque na cidade como espaços inclusivos, que receberam, ao longo dos anos, encenações heterogêneas que talvez possam ser vagamente aproximadas pela inquietação artística, e mais cursos, workshops, oficinas e seminários, programação norteada pelas atrizes e pelo diretor Aderbal Freire-Filho. É provável que uma parcela significativa desses trabalhos não conseguisse outro espaço para se apresentar (com exceção do Espaço Sesc, em Copacabana, sempre tomado pela generosa alternância de montagens permanecendo durante curto período em cartaz) ou para dar continuidade à temporada (tendo em vista que o Poeira e o Poeirinha, além das estreias de espetáculos inéditos, se destinam a reestreias de encenações vindas de teatros diversos).
A decisão de inaugurar um teatro não foi instantânea. Marieta Severo e Andréa Beltrão começaram a trabalhar juntas na ótima montagem de Mauro Rasi para o seu próprio texto, A Estrela do Lar, parte de um grupo de peças autobiográficas. Desenvolveram a parceria em A Dona da História, texto escrito e dirigido por João Falcão. Atrizes de gerações diferentes, que construíram percursos também distintos em cima do palco, as duas estabeleceram sintonia em relação à identidade do Poeira. Marieta, desde os anos 1960, vem valorizando consideravelmente a dramaturgia brasileira, a julgar pelas mencionadas peças de Rasi e Falcão e por sua presença em montagens de textos de Gastão Tojeiro (em Sabiá 67, apropriação de Onde Canta o Sabiá?, a cargo de Paulo Afonso Grisolli), Leilah Assumpção (Jorginho, o Machão), Nelson Xavier (O Segredo do Velho Mudo), Martins Pena (As Desgraças de uma Criança, espetáculo de grande sucesso), Oduvaldo Vianna Filho, Ferreira Gullar (autores de Se Correr o Bicho Pega, Se Ficar o Bicho Come, trabalho do Grupo Opinião), Chico Buarque (Ópera do Malandro) e, em especial, a célebre trilogia de Naum Alves de Souza (No Natal a Gente vem te Buscar, Aurora da Minha Vida e Um Beijo, um Abraço, um Aperto de Mão). Não se deve, em todo caso, esquecer de suas incursões por peças estrangeiras, que renderam encenações instigantes – como Amadeus, de Peter Shaffer, Cenas de Outono, de Yukio Mishima, Antígona, de Sófocles, e Torre de Babel, de Fernando Arrabal. Já Andréa começou nos grupos jovens da virada dos anos 1970 para 1980, como Manhas e Manias. Brilhou no humor através de espetáculos saborosos, como O Amigo da Onça, de Chico Caruso e Nani, e enveredou, com habilidade, pelo drama em A Memória da Água, de Shelagh Stephenson, A Prova, de David Auburn, e Como Aprendi a Dirigir um Carro, de Paula Vogel.
Dentro do compartimento, os nomes dos muitos artistas que passaram pelo Poeira e pelo Poeirinha (Foto: Nil Caniné)
Para celebrar os 15 anos do Poeira, Marieta e Andréa optaram por uma exposição. Diante da impossibilidade de Aderbal, por motivos de saúde, assumir a concepção, as atrizes chamaram Bia Lessa. O resultado aponta para um entrosamento entre a trajetória do Poeira e a criatividade de uma diretora que costuma promover, em seus espetáculos, conjugações entre o teatro e outras manifestações, principalmente as artes plásticas. Na visita ao Teatro Poeira, o espectador transita por uma instalação na qual frases de textos, realçadas por todo o espaço, objetos simbólicos e eventuais vozes em off são articulados de maneira não reiterativa. É convidado, nesse sentido, a estabelecer associações próprias, vivenciando momentos de descoberta ao abrir armários e gavetas em áreas do teatro até então inacessíveis (como camarins e coxias). Em determinado estágio da travessia, o visitante chega ao palco e, de lá, assiste à projeção de um vídeo, exibido em telas localizadas no espaço destinado à plateia, no qual Marieta e Andréa falam sobre o vínculo que as une – e deu origem ao teatro – e as interações com os vários artistas que passaram pelo Poeira. Há também menções a encenadores do passado e do presente, responsáveis por declarações em relação ao fazer teatral que continuam pulsantes nos dias de hoje. A itinerância se completa com pequenos registros fotográficos de cada um dos muitos espetáculos que desembarcaram no teatro.
A exposição se estende ao espaço do Poeirinha, com o visitante percorrendo livremente a segunda casa. Pelo foyer, surgem fotos de espetáculos ampliadas e coladas numa estrutura que intencionalmente parece em construção. Ao mesmo tempo em que trazem à tona a fase de obras do teatro, Marieta, Andréa e Bia sublinham a ideia de teatro como algo inacabado, em processo. Lembram que um espetáculo não é uma realização cristalizada e sim um trabalho que muda a cada apresentação, permanecendo sempre em aberto, nunca finalizado. Dentro da sala do Poeirinha, performers peneiram areia sobre placas de metal e revelam imagens sugestivas da intensidade dos encontros entre os artistas.
Marieta Severo e Andréa Beltrão dão prosseguimento à honrosa tradição de atores e atrizes – como Aurimar Rocha (que arrendou o Teatro de Bolso de Silveira Sampaio), Teresa Rachel e Thaïs Portinho, entre alguns exemplos – que mantiveram teatros, ainda que com graus de importância distintos. No caso do Poeira e do Poeirinha, um consistente pensamento artístico vem regendo, no decorrer de todos esses anos, as escolhas das sócias.
Os ingressos podem ser adquiridos gratuitamente pela plataforma Sympla
Marcelo Drummond e Guilherme Calzavara em Esperando Godot (Foto: Jennifer Glass)
José Celso Martinez Corrêa apresenta dois trabalhos no terreno do audiovisual: Esperando Godot, em que ocupa o lugar de encenador, função dividida com Monique Gardenberg e que vem exercendo primordialmente no teatro e de modo pontual no cinema, a exemplo de 25 (1975), realizado no período de seu exílio, e O Rei da Vela (1982), dirigido com Noilton Nunes; e Fédro, em que surge diante das câmeras ao lado de Reynaldo Gianecchini, numa posição, de ator, também frequente em sua carreira, considerando sua constante presença em cena nos espetáculos que assina.
Esperando Godot, peça de Samuel Beckett, é particularmente próxima de Zé Celso, que a encenou em 2001, em montagem produzida por Gardenberg (à frente da Dueto Produções). Além disso, o texto marcou a última aparição de Cacilda Becker, no espetáculo de 1969 dirigido por Flavio Rangel. No intervalo entre os atos da peça, numa das apresentações, Cacilda sofreu um derrame e foi levada para o hospital, onde permaneceu pouco menos de 40 dias em coma antes de morrer. Zé Celso escreveu e montou textos sobre Cacilda como forma de homenageá-la.
Zé Celso e Gardenberg filmam Esperando Godot no palco-passarela do Teatro Oficina, espaço amplamente aproveitado, e propõem uma espécie de paradoxo em relação ao texto original: se na peça de Beckett, os protagonistas, Vladimir e Estragon, são reféns da espera por alguém (Godot) que nunca chega – situação que sugere estagnação –, na encenação/filmagem eles têm a possibilidade de se locomoverem livremente – as portas do teatro, tanto na parte da frente quanto na de trás, e as telas da parede envidraçada ficam abertas.
Essa abertura para o espaço externo parece um modo de sublinhar que, na prática, Vladimir e Estragon podem ir embora. A exibição, ao fundo, da movimentação da São Paulo de hoje contrasta, em certa medida, com a estrutura circular, confinada, de uma peça em que no segundo ato os mesmos personagens retornam para continuar esperando Godot, ainda que não consigam se lembrar exatamente de estarem desde antes envolvidos nessa tarefa.
O destaque à configuração atual do Oficina realça a conexão com o aqui/agora buscada pelos diretores. Esse elemento se manifesta em referências ao momento presente – a chegada de Estragon usando máscara, a entrada de Lucky com mochila de iFood, a associação entre o autoritarismo de Pozzo e o comportamento do presidente Jair Bolsonaro. A aproximação com a contemporaneidade também sobressai na tradução coloquial (de Catherine Hirsch e Verônica Tamaoki), que dessacraliza o texto de Beckett.
Mas esse Esperando Godot não se restringe ao instante imediato. Ao longo da apresentação/projeção, os diretores investem numa conjugação entre passado e presente. A própria valorização da arquitetura peculiar remete ao projeto concebido por Lina Bo Bardi e Edson Elito nos anos 1980. A caracterização de Vladimir e Estragon como maltrapilhos – vestindo roupas rasgadas, rotas, esfarrapadas – traz à tona um elo com a realidade sintetizado numa fala de Vladimir – “Ninguém reconhece mesmo a gente” – que pode ser interpretada como uma alusão aos invisibilizados da sociedade, aos relegados ao lugar de pária, extrato abraçado na cena inclusiva do Oficina, em especial nos espetáculos a partir de Os Sertões, de Euclides da Cunha.
Outras citações atravessam Esperando Godot: ao edifício Martinelli, construção histórica e emblemática de São Paulo, a comediantes recentes (Paulo Gustavo) e lendários (Grande Otelo), a uma peça célebre (Longa Jornada Noite Adentro, de Eugene O’Neill, autor que influenciou o dramaturgo Nelson Rodrigues, que prestou inestimável contribuição ao teatro brasileiro, também lembrado).
Além das articulações entre espaço interno/externo e entre passado/presente, Zé Celso e Gardenberg fundem realidade e artifício. Sugerem vínculos com o panorama político e social ao mesmo tempo em que potencializam o postiço por meio da peruca de Lucky, do uso que Pozzo faz do colírio para produção de lágrimas e da decisão de expor a realização do trabalho através da imagem da equipe de filmagem no intervalo entre os atos da peça.
Esse jogo de contrários se estende ao campo da atuação. Guilherme Calzavara (destaque do elenco) e Marcelo Drummond, intérpretes de Vladimir e Estragon, enveredam por registro menos empostado, mais próximo da concretude da palavra, distante do tradicional virtuosismo do clownesco contido nos personagens. Pascoal da Conceição e Danilo Grangheia apresentam atuações mais expandidas, nas quais as manifestações físicas são mais explicitadas, seja através de uma voz de comando, seja da evidenciação de fluidos corpóreos. E o menino Raphael Moreira é o mensageiro, acentuando o contraponto entre a força catártica de Exu e a padronização das respostas em inglês.
José Celso Martinez Corrêa e Reynaldo Gianecchini em Fédro (Foto: Divulgação)
Em Fédro, Zé Celso, que não está atrás das câmeras nesse filme dirigido por Marcelo Sebá, também recorre a um texto – o diálogo, escrito por Platão, entre Sócrates e o jovem Fédro. Mas não há, como em Esperando Godot, atores interpretando personagens da ficção – por mais que, nesse filme, a separação entre os atores e as figuras de Beckett não seja rígida. Aqui, Zé Celso e Reynaldo Gianecchini surgem como eles mesmos num ansiado reencontro. Há 20 anos Gianecchini participou da montagem de Boca de Ouro, peça de Nelson Rodrigues, no Teatro Oficina, fase imediatamente anterior ao seu ingresso na televisão. Durante todo esse tempo não voltou ao Oficina e nem reviu Zé Celso.
Zé Celso e Gianecchini interagem através de uma leitura de Fédro. Não dependem, porém, por completo do texto, que funciona como pouco mais que um gatilho para falarem sobre autoexposição, corpo e passagem do tempo. Ambos afirmam que chegaram ao dia da filmagem sem qualquer planejamento prévio, mas claro que houve uma concepção anterior a esse momento, tanto em relação à escolha do texto de Platão quanto à preparação do espaço – um apartamento – onde os dois se reencontram.
Esse reencontro é marcado, até certo ponto, por uma dificuldade de ambos em estabelecer sintonia. Fica a sensação de que os dois, apesar de reunidos num único espaço, pertencem a planos distintos. Zé Celso externa a sua libertária visão de mundo por meio de um discurso que parece estar sendo dito a um interlocutor indefinido. Portador de uma fala reconhecível pelos que têm contato com o seu trabalho e acompanham a sua trajetória, Zé Celso dá a impressão de que poderia estar dizendo aquelas palavras a qualquer pessoa e não a um indivíduo específico. Inevitavelmente influenciado pelos dias de hoje, não se debruça, porém, sobre um determinado contexto; ao contrário, transcende tempos históricos. Já Gianecchini faz observações decorrentes de percepções de agora. Procura se colocar em estado de disponibilidade diante de Zé Celso, mas revela um grau de desconforto, uma presença algo ameaçada, defendida. O texto de Platão é estruturado como diálogo; essa dinâmica, contudo, é justamente o que não se estabelece entre Zé Celso e Gianecchini.
No entanto, aos poucos, um elo se firma entre ambos. Constantemente Zé Celso assinala que Gianecchini precisa relaxar (“você é muito amarrado”, “você ainda está muito tenso”). À medida que a projeção avança, o veterano diretor radiografa, com apuro crescente, o estado, principalmente corporal, do ator. Afirma que Gianecchini teme a aproximação física, a entrega. Zé Celso, numa conversa cada vez mais centrada na importância da autoexposição do indivíduo, seja ele artista ou não, defende a nudez do corpo, mas dimensiona o autodesnudamento como instância de revelação para além de um despir literal. “Vou ter que olhar nos seus olhos nus”, diz, em dado momento, para Gianecchini, que adquire um grau de espontaneidade na interação com Zé Celso.
O corpo impera em Fédro. Essa percepção vale tanto para as passagens mais expressivas – quando os corpos contrastantes de Zé Celso e Gianecchini se tocam suavemente na cama – quanto para a evocação do violentíssimo assassinato de Luís Antonio Martinez Corrêa, irmão de Zé Celso, em 1987. A articulação entre corpo e morte também vem à tona nas breves lembranças do câncer enfrentado por Gianecchini e da tortura sofrida por Zé Celso durante a ditadura.
Fédro coloca o espectador diante da vulnerabilidade do artista – estado bem mais visível em Gianecchini do que em Zé Celso – que tende a aumentar quando não existe personagem no sentido convencional do termo. Numa proposta como a desse filme não há como se esconder atrás de uma identidade fictícia. Os atores representam, na medida em que estão diante de uma câmera, só que a si mesmos. É como se as personagens continuassem existindo, mas como biombos transparentes que não permitem ocultar, pelo menos não significativamente, os atores. A atmosfera de intimidade do encontro dos dois no apartamento é, inclusive, quebrada com frequência pela menção à profissionais da equipe (que ajustam microfones e a iluminação) e pela imagem do cinegrafista no reflexo da janela.
Há a intenção de frisar que eles não estão sozinhos, que aquela conversa personalizada serve a um trabalho. A construção do filme transparece na montagem de Alessandro Danielli, que mescla vários instantes do encontro: ambos jantando, conversando, ensaiando, na cama e fora dela. Mas a noção de tempo não se restringe a esse reencontro ocorrido numa noite de junho de 2019, em São Paulo. Zé Celso traz à tona outras épocas – sua sempre referida encenação de O Rei da Vela, em 1967, em que apresentou o texto, até então inédito, de Oswald de Andrade, promovendo uma guinada no percurso do Teatro Oficina, e espetáculos posteriores, casos de Mistérios Gozosos e As Bacantes. Há, nesse sentido, uma condensação de tempos nesse reencontro no apartamento, incluindo ainda um apontamento para o que, porventura, possa vir a acontecer. “Hoje começa o caminho de uma futura peça chamada Fédro”, sugere Zé Celso.
O acúmulo de tempos contido, em especial, nas referências, a relevância destinada aos espaços, a não ocultação das equipes de filmagens e a realização de reencontros afetivos para Zé Celso (com um texto que já montou e um ator que já dirigiu) são alguns dos elementos comuns aos dois trabalhos. E se Esperando Godot bate na tela como uma apropriação livre, mas sem explodir com a sua construção estrutural, da peça de Samuel Beckett, Fédro pode fazer o público lembrar, ainda que longinquamente, de Anton Tchekhov. Um autor que abordou a falta de interação entre personagens reunidos num mesmo plano histórico e geográfico. E que concebeu personagens que extravasam as bordas das peças não só ao mostrá-los com vidas que extrapolam o fragmento de tempo descortinado diante do leitor/espectador como ao destacá-los realizando projeções para o futuro, quando não estarão mais vivos.
Angela Leite Lopes em Dusefonia (Foto: Divulgação)
A atriz italiana Eleonora Duse (1858-1924) demonstrou adesão ao discurso antigo e à prática moderna do teatro. Por um lado, considerava o ator não mais que um elemento de ligação entre o texto do autor e o espectador, posicionamento que realçava a tradição textocentrista baseada numa superioridade da obra do dramaturgo em relação aos demais componentes da cena. Por outro, revolucionou o entendimento sobre o trabalho do ator ao evidenciar, em suas interpretações, uma doação sem reservas na encarnação das personagens. Ao procurar ocultar a própria presença para que o texto dramático sobressaísse, o contrário acontecia: Duse acabava monopolizando a atenção do público por meio de um registro interiorizado, filigranado, contido.
Esse paradoxo, destacado pela teórica Beti Rabetti no texto Eleonora Duse por Silvio D’Amico: a Interpretação que se Esconde, é abordado em Dusefonia, experimento concebido por Angela Leite Lopes e Miguel Vellinho. “Tirar do meu ventre, das minhas entranhas, aquele suspiro fatal”, afirma, em dado momento, Duse, que, norteada pelo princípio da autoexposição, da revelação de um ator desmascarado, acreditava que “não se emula, nem representa”.
A mencionada determinação de Duse a imprimir uma presença discreta, em nada impositiva, decorria de uma percepção do ofício como “a arte de desaparecer”. Talvez houvesse a consciência do caráter efêmero do ato teatral, que se dissolve assim que a apresentação termina e nunca mais será repetido de maneira idêntica – mesmo um eventual registro audiovisual modifica a apreciação do trabalho. O espetáculo teatral (e, claro, o desempenho do ator) permanece vivo na subjetividade do espectador, mas, concretamente, esfumaça, morre.
Por força do período em que viveu – e lembrando ainda que se viu obrigada a interromper a carreira durante uma fase devido a um esgotamento emocional gerado pela forma visceral com que exerceu a profissão -, Duse construiu seu percurso no teatro e, por isso, a inestimável importância de sua contribuição artística vem à tona mais por meio de pesquisas e referências do que efetivamente de flagrantes de atuação. Exceção: sua aparição no filme Cenere (1916), de Febo Mari e Arturo Ambrosio, encerrando Dusefonia.
A morte também se insinua por meio do boneco, objeto inerte que ganha vida a partir da interação estabelecida pelo intérprete. É o que faz Angela Leite Lopes em Dusefonia, ao “contracenar” com boneco que evoca a Margarida Gautier de A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas. O boneco, possivelmente um duplo de Duse, remete à supermarionete de Gordon Craig – encenador do qual a atriz se aproximou na montagem de Rosmersholm, de Henrik Ibsen -, conceito que aponta para a utopia da perfeição. Manipulável, o boneco é plenamente controlado e proporciona, nesse sentido, uma chance de libertação das inconstâncias e imprecisões humanas que, para Craig, inviabilizariam o status de obra de arte absoluta. Duse, porém, compreendia a perfeição como um amálgama entre domínio técnico e alma. Saudosa do teatro de bonecos da infância, Duse surge mobilizada por memórias do passado que não podem mais ser reconstituídas. A abrangente temática da morte sugere algum elo com o encenador polonês Tadeusz Kantor, frisado em Dusefonia.
A dramaturgia, composta por cartas e episódios da trajetória de Eleonora Duse, tem estrutura fragmentada, assim como as partes de corpo expostas aos poucos aos espectadores. Atravessada pela atuação suave de Angela Leite Lopes, que não tenta “reproduzir” Duse, esse experimento cênico/audiovisual conecta o público brasileiro com a lendária atriz europeia, que, inclusive, já esteve se apresentando aqui. Uma atriz que se tornou marco de interpretação moderna, em especial no que diz respeito ao modo como se fundiu nas personagens de Ibsen.
Onde ver: No canal YouTube do CEAK (Centro de Estudos Ana Kfouri)
Tilda Swinton no curta-metragem A Voz Humana (Foto: Divulgação)
Pedro Almodóvar se apropria de A Voz Humana, monólogo de Jean Cocteau, num curta-metragem atravessado pela oscilação entre o apego ao realismo e a quebra desse registro. Essa característica é evidenciada na configuração espacial. O apartamento da personagem, concebido de maneira minuciosa, obedece à gramática do realismo, tendência levemente suavizada pelo acúmulo de cores fortes (o azul e o vermelho, como de hábito, sobressaem, mas o verde também ganha destaque). O sentido de apresentar uma locação detalhista, munida de todos os móveis e objetos comuns a uma casa, estaria em gerar identificação no espectador, que se projetaria imaginariamente nos ambientes descortinados na tela. No entanto, essa locação não surge como espaço absoluto. É, ao contrário, mostrada como uma espécie de ilha dentro de um grande galpão. Por isso, o apartamento não desponta como um espaço “real”, encerrado em si, mas como construção cenográfica, como estrutura armada, sem disfarces. Ao ser confrontado com a exposição do artifício, o público deixa de se relacionar com o espaço de modo ilusionista.
Há uma oposição entre o apartamento repleto de tonalidades quentes, perfeitamente arrumado – apesar de poluído, em certa medida, por ações suscitadas pelo descontrole da personagem –, e o galpão inóspito, aparentemente abandonado. Tilda Swinton transita entre esses espaços destoantes, entre dentro e fora do apartamento (mas lembrando que o fora do apartamento significa estar dentro de outro espaço, o do galpão), encarnando uma personagem mergulhada na dor do término de um relacionamento com um homem com quem conversa ao telefone, em ligação bastante acidentada. A atriz não se descola da personagem, ainda que esta eventualmente se distancie de circunstâncias que cria, a exemplo da passagem em que contempla o incêndio que provocou. A saída para a rua marca o rompimento com espacialidades confinadas, algo que contrasta com a temática da escravidão amorosa. E o fogo que impera nos momentos finais é uma imagem-síntese da desestabilização decorrente do sofrimento causado pelo luto.
O fio do telefone, elemento simbólico – o único que parece mantê-la conectada ao homem de quem depende emocionalmente (“Eu estou com o fio em volta do meu pescoço. Estou com a sua voz em volta do meu pescoço”) –, é substituído por tecnologia do século XXI. Mas, mesmo com as alterações propostas nesse filme exibido no Festival e Veneza e na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, Almodóvar demonstra fidelidade tanto aos princípios de seu cinema quanto à dramaturgia de Cocteau.
Onde ver: Now, Amazon Prime, Vivo Play, Google Play e YouTube Filmes.
Ziembinski, encenador e ator retratado por Joel Pizzini no documentário Zimba (Foto: Divulgação)
Nos minutos iniciais de Zimba – documentário exibido no Festival É Tudo Verdade que acaba de desembarcar nos cinemas -, o público se depara com imagens da morte do encenador e ator Zbigniew Ziembinski (1908-1978). Joel Pizzini apresenta um exercício imaginativo (um argumento original de Ziembinski) sobre um ator consagrado que forja a própria morte para dimensionar a sua relevância no mundo e, ao notar seu crescente esquecimento, anseia por revelar a todos que está vivo. Já perto do término da projeção, Ziembinski fala sobre seus primeiros anos na Polônia natal – o nascimento, a perda precoce do pai. Nas lembranças do começo de sua existência, a morte se mantém presente. Pela boca de um de seus personagens, Ziembinski constata que “só depois de morto me fizeram ver o quão importante é a vida”. Há uma estrutura coerente, redonda, que conecta os pontos extremos desse filme, conjugando transcendência e impotência diante da vida.
Essa trajetória intensa, ao contrário do que possa parecer, não surge disposta em ordem cronologicamente inversa. Na montagem, Idê Lacreta rompe de maneira mais complexa com uma tradicional linha do tempo. Promove um instigante embaralhamento. Não ambiciona expor todas as contribuições de Ziembinski, mas não abre mão de fornecer ao espectador uma perspectiva panorâmica dos principais feitos do artista: os trabalhos realizados ainda na Polônia, a vinda para o Brasil em 1941, o encontro com o grupo amador Os Comediantes -, fez a iluminação da remontagem de A Verdade de Cada Um, de Pirandello, dirigiu espetáculos, atingindo o ápice na revolucionária encenação de Vestido de Noiva, peça de Nelson Rodrigues, marcada pela sintonia com o cenógrafo Santa Rosa -, o ingresso no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) – onde estabeleceu elo inquebrantável com a atriz Cacilda Becker – e a sua tendência, como ator, a investir em composições físicas e vocais dos personagens, a exemplo de sua atuação na novela O Bofe, de Braulio Pedroso, em 1972. “Eu aprendi a ver o brasileiro através das caricaturas de Ziembinski”, disse Antunes Filho, que, em 1974, dirigiu, no programa Teatro Dois, da TV Cultura, uma versão de Vestido de Noiva.
Ao longo de quase todo o filme não há uma correspondência direta entre texto e imagem. A exceção é o momento em que, diante da evocação da montagem de Vestido de Noiva, peça de Nelson Rodrigues, pelo grupo Os Comediantes, sob a direção de Ziembinski, em 1943, aparecem imagens externas e internas do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, palco onde o espetáculo aconteceu. Essa conexão, porém, não se reduz a em mero didatismo e o filme permanece estimulando o espectador a traçar articulações a partir do material que bate na tela.
Seja como for, o acúmulo de tempos que atravessa Zimba não se restringe à montagem. Está na gênese do projeto, a julgar pelo entrelaçamento de passado e presente concretizado por Pizzini. As imagens de arquivo trazem à tona flagrantes de uma Europa destruída durante a Segunda Guerra Mundial, depoimentos de atores e atrizes (Fernanda Montenegro, Walmor Chagas, Paulo José, Domingos Oliveira) sobre Ziembinski e o registro de Nelson Rodrigues caminhando por Copacabana. Atrizes emblemáticas realçam facetas fundamentais da jornada do artista. Nathalia Timberg, que interpretou Madame Clessi na mencionada versão de Vestido de Noiva, a cargo de Antunes Filho, e foi dirigida por Ziembinski na novela A Rainha Louca, de Glória Magadan, em 1967, resgata informações sobre os passos profissionais do encenador, na Polônia. A atriz, que cursou Belas Artes, frisa como Ziembinski canalizou o dom da pintura para a prática teatral. Nicette Bruno rememora, em particular, a montagem de Ziembinski, no Teatro Popular de Arte (TPA), para Anjo Negro, uma das peças míticas de Nelson Rodrigues, em que integrou o elenco no papel da jovem Ana Maria. Foi uma escolha dramatúrgica ousada para os padrões do ano de 1948, apesar do protagonista, Ismael, não ter sido interpretado por Abdias do Nascimento, conforme o desejo de Nelson, e sim por Orlando Guy, ator branco que pintou a própria pele. Camilla Amado, que participou, como Alaíde, de outra versão de Vestido de Noiva, assinada por Ziembinski, em 1976, dá vazão a percepções significativas do texto e do contato com o encenador.
Essas impressões preciosas são compartilhadas com um elenco jovem (Bárbara Vida, Ana Paula Quevedo, Fernanda Huffel, Jack Berraquero) numa espécie de contracena entre o presente e diferentes camadas de passado, considerando os espetáculos concebidos a partir da peça de Nelson Rodrigues. Uma proposta de Pizzini relacionada ao jogo temporal do filme. O resultado soa algo artificial. Mas não diminui o valor desse novo mergulho do cineasta no universo artístico – e, particularmente, no teatral – depois de Glauces – Estudo de um Rosto (2001), curta-metragem em que comprovou a multiplicidade da atriz Glauce Rocha por meio de uma colagem de suas atuações em diversos trabalhos, com recorte, como o título indica, na expressão facial. O rosto de Ziembinski também é abordado em Zimba como uma fisionomia de traços determinantes – contrariados, contudo, através de caracterizações surpreendentes para os personagens que interpretou. Uma evidência da versatilidade de um artista que, aqui, recebe um retrato abrangente, mas nem por isso disperso.