Tania Brandão, organizadora do livro, durante o lançamento realizado no Festival de Curitiba (Foto: Annelize Tozetto)
A publicação de Pum!, burleta de Artur Azevedo e Eduardo Garrido, é resultado da tenacidade da pesquisadora, professora e crítica de teatro Tania Brandão, que há mais de 15 anos começou a procurar esse texto. Ao longo do tempo, realizou extensa jornada investigativa. Descobriu que os manuscritos pertenciam ao ator Labanca, que doou à atriz Fernanda Montenegro, que, por sua vez, presenteou o crítico Sábato Magaldi em sua posse na Academia Brasileira de Letras (ABL). Foi com Sábato que Tania conseguiu uma cópia do texto – na verdade, uma cópia da cópia –, material a partir do qual trabalhou, em parceria com o professor Diógenes Maciel, na organização do livro, que também conta com fortuna crítica referente às encenações do texto, caderno de imagens e estudo introdutório assinado por Tania. O livro (editado pela Papel da Palavra), que já foi lançado no Mezanino do Espaço Sesc e durante o Festival de Curitiba, terá nova noite de autógrafos, marcada para segunda-feira, dia 14, na Livraria Janela (R. Maria Angélica, 171B), às 19h.
Como conseguiu ter acesso ao texto?
TANIA BRANDÃO – Comecei a procurar o texto em 2008 por causa do centenário de morte de Artur Azevedo. Soube que fizeram, em 1999, uma montagem infanto-juvenil. Falei com Claudia Ventura, que participou do espetáculo e me indicou os profissionais que estiveram à frente do projeto. Eles informaram que tiveram acesso ao manuscrito – que, originalmente, pertencia a Labanca, que doou a Fernanda Montenegro. Ela cedeu ao grupo, que fez uma cópia e devolveu. Entrei em contato com Fernanda, que disse não ter mais o manuscrito porque havia doado a Sábato Magaldi quando ele entrou para a Academia Brasileira de Letras (ABL). Sábato, por sua vez, destinou o texto à ABL. Busquei, então, na ABL, mas o texto não estava mais lá. Soube que os acadêmicos podem retirar os livros da biblioteca sem controle por parte da instituição. Mas Sábato havia feito uma xerox, que me emprestou para que eu tirasse uma cópia.
Como foi o trabalho a partir dessa cópia?
A partir da cópia da cópia, eu e Diógenes Maciel reproduzimos o texto o mais fielmente possível. Alguns pequenos trechos ficaram indecifráveis. Agora estou me dedicando a um estudo do manuscrito enquanto história da cena. Quero fazer um levantamento das montagens desse texto no Brasil e em Portugal, onde houve uma.
Quais são os elementos diferenciais de Pum! em relação ao restante da obra de Artur Azevedo?
O principal é a ousadia. Pum! é um texto que incomoda. O título é muito irreverente. Traz um certo desconcerto. Apesar de Azevedo ser muito respeitado, há quem considere a peça imoral. Além disso, é difícil separar a criação de Azevedo da de Eduardo Garrido. Azevedo tem habilidade com o humor, a paródia, elementos muito refinados em Pum! O texto possui uma acidez maior que outros escritos dele. Mas é uma comédia romântica sobre dois jovens que enfrentam a oposição de um pai que tem interesse econômico em casar a filha com outro homem.
Acha que a realidade ganha mais destaque nesse texto, que traz à tona a Revolta da Armada, do que em outros de Artur Azevedo?
É como se esse texto tivesse contaminação da revista de ano, gênero que lida com fatos históricos. Mas Pum! soa mais contundente porque está ligada a um acontecimento que se constituiu como ameaça de bombardeio ao Rio de Janeiro.
A edição de Pum! é complementada com fotos do Rio de Janeiro na época em que a história se passa. Teve dificuldade em encontrá-las?
Primeiro descobri, na Biblioteca Nacional, que o Instituto Moreira Salles (IMS) é detentor dos direitos das fotos. O IMS está fechado e não consegui retorno por parte da instituição. Aí achei na internet fotos no site da Marinha. Entrei em contato e foram maravilhosos. Cederam todas as imagens que pedi. Tive que restringi-las no livro para reduzir um pouco os custos da edição.
Além de Pum!, você busca outro texto?
Persigo, desde os anos 1980, um texto chamado A República, de Aluísio e Artur Azevedo, uma revista referente ao ano de 1889. É um texto perdido. Não temos mais comércio de manuscritos teatrais nos sebos e leilões no Brasil. Em Portugal ainda é possível encontrar.
Encantado, espetáculo de Lia Rodrigues apresentado no Festival de Curitiba (Foto: Humberto Araujo)
CURITIBA – A importância de delimitar fronteiras entre as manifestações artísticas é uma discussão em aberto. Por um lado, definir características para cada arte pode ser considerado um reducionismo, tendo em vista as extensas possibilidades de interface entre elas; por outro, não estabelecer particularidades talvez faça com que as artes permaneçam misturadas de forma indistinta. A inclusão de espetáculos de dança num festival de teatro contribui para a diversidade da seleção e amplia o intercâmbio. Mas, apesar de teatro e dança serem frequentemente unidos numa mesma categorização, os procedimentos e códigos que norteiam esses mundos artísticos não são idênticos.
Um crítico de teatro – capacitado, em tese, para analisar variadas propostas de linguagens de encenações – não está necessariamente habilitado para discorrer sobre um trabalho de dança e vice-versa. Por isso, cabe aqui um cuidado especial nas observações a respeito de Encantado, espetáculo de dança dirigido por Lia Rodrigues (já mostrado no Rio de Janeiro) que integrou a recém-encerrada edição do Festival de Curitiba.
Como tantos espetáculos, Encantado não obedece aos princípios tradicionais da dança. Nos primeiros minutos, bailarinos entram em cena e desenrolam, lentamente e à meia luz, um tapete formado por diversos pedaços de tecido. Logo após, voltam ao palco, nus, e, individualmente, “mergulham” nos tecidos, que se tornam peles. Um ou outro deixa aparente o corpo despido. Essa parte introdutória traz à tona, ainda que ao longe, um dos espetáculos anteriores dirigidos por Lia Rodrigues: Aquilo de que Somos Feitos, no qual os bailarinos desconstruíam com mais contundência a representação ao entrarem nus no espaço – e, naquele caso, circularem entre os espectadores, borrando a separação entre a área destinada à atuação e ao público.
De início, não há música em Encantado. A sonoridade, que remete a referência indígena, é inserida depois de certo tempo e vai aumentando de intensidade. Por meio dos tecidos – muitos com estampas tropicais e/ou kitsch, alguns lisos, sempre com cores vivas –, os bailarinos sugerem imagens concretas, mas sem inibir a abertura para múltiplas interpretações dos espectadores. Encantado é, assim, um espetáculo que parece nascer aos poucos diante da plateia. A cena, porém, não se instala a partir da inserção das sonoridades, da produção de imagens ou da realização da dança; existe antes desses elementos serem introduzidos, no mencionado começo com os bailarinos desenrolando o tapete.
Num determinado instante, quase todos os bailarinos se concentram no fundo do grande palco do Teatro Guaíra com os tecidos emaranhados. No meio e no proscênio, o espaço fica vazio até ser ocupado por um pequeno número de bailarinos, com movimentações em destaque. A cena não se resume aos artistas que se encontram em primeiro plano; também abarca o fundo “caótico”. Esse “caos” passa a imperar quando os bailarinos se cobrem com a maior quantidade de tecidos – e de maneira desordenada, contrastando o excesso intencional com o desnudamento físico inicial. Seja como for, nus ou envolvidos pelos tecidos, os bailarinos compõem um conjunto heterogêneo em que cada um não perde a própria individualidade mesmo ao se reunirem como tribo e seguirem uma única marcação coreográfica. Encantado é um espetáculo que estimula e desafia o olhar do espectador.
Alexia Twister interpreta Rei Lear na encenação dirigida por Ines Bushatsky (Foto: Annelize Tozetto)
CURITIBA – Artistas drag queens interpretam os personagens de uma das principais tragédias de William Shakespeare – Rei Lear. Mas o foco da encenação dirigida por Ines Bushatsky, apresentada dentro da programação da Mostra Lucia Camargo no Festival de Curitiba, não reside numa leitura da peça a partir da abrangência da sexualidade ou simplesmente do sexo biológico – como fez Akira Kurosawa em Ran (1985) ao trocar as três filhas de Lear por filhos. A diretora parece propor uma articulação entre o mascaramento drag e a carga de verdade e mentira embutida numa manifestação artística como o teatro.
Diferentemente do ator que some por trás da personagem, os artistas drags surgem diante do público com maquiagem abundante (visagismo de Malonna e Polly), figurinos (de Salomé Abdala) repletos de cores e brilhos e presenças cênicas expansivas. São presenças mais explicitamente teatrais, o que não significa que sejam mais autênticas ou postiças que o ator “invisível” da cena naturalista voltada para a reprodução de uma fatia do cotidiano.
O teatro está no centro da cena através de seu símbolo mais tradicional: a cortina. A representação teatral é um ingrediente importante na dramaturgia de Shakespeare, valendo lembrar do seu uso como instrumento revelador da verdade em Hamlet. Já em tragédias do autor como Macbeth, Otelo e Rei Lear, há personagens que constantemente fingem (nesse sentido, representam) e inventam situações para alcançar seus objetivos.
As cortinas também são utilizadas de maneira sugestiva, a exemplo da queda delas ao final do espetáculo, sinalizando as mortes das filhas de Lear. Cabe assinalar, inclusive, um interessante contraste entre a escassez de elementos da montagem (cenografia de Fernando Passetti) – síntese que se perde um pouco no palco do Teatro Guairinha – e o intencional excesso estético do mundo drag. A encenação transita, de forma hábil, entre a intensidade e a discrição, variação que sobressai na iluminação de Aline Santini.
Em meio ao jogo de oposições que atravessa a montagem, é possível perceber ainda uma certa discrepância entre a tendência a uma abordagem histriônica da peça – a partir das liberdades em relação ao material original, flagrantes nas gírias e citações atuais (adaptação a cargo de João Mostazo) – e as oportunas contenção e sobriedade com que boa parte do elenco – composto por Alexia Twister, Antonia Pethit, DaCota Monteiro, Ginger Moon, Lilith Prexeva, Maldita Hammer, Mercedez Vulcão, Thelores, Xaniqua Laquisha – diz o texto.
No palco, o monarca Lear aparece esteticamente montado, mas com voz firme e contundente, própria de um personagem abalado por experiências trágicas e desestabilizadoras. Esse rigor, porém, não se mantém ao longo de toda a apresentação. À medida que Lear é destituído dos direitos e luxos até então garantidos pelo poder que exerce e envereda por jornada de enlouquecimento (ou de conquista da sanidade), o espetáculo dá vazão a uma paródia generalizada, que se estende por descartável sátira aos signos habituais do teatro contemporâneo. Em outros instantes, a desconstrução da atmosfera densa é mais bem-sucedida, a exemplo da inclusão da música It’s Raining Men, da dupla The Weather Girls.
As muitas referências ao pop ganham alguma perspectiva crítica, como na cena em que essa batida musical acompanha os discursos de Goneril e Regan, as filhas de Lear que afirmam, com hipocrisia, o suposto amor que sentem pelo pai. Em contrapartida, a fala sincera de Cordelia é marcada pela oscilação entre os extremos da ópera e do rock, diversidade que norteia a trilha sonora de Gabriel Edé.
Essa montagem de Rei Lear não se limita a destacar a exuberância estética e comportamental da drag queen. Insere-a, isto sim, numa cena despojada, com reduzidos – e ocasionalmente expressivos – recursos. Mesmo que o espetáculo ceda, em determinados momentos, a um humor de efeito mais imediato junto ao público, chama atenção o domínio da palavra evidenciado nas atuações de parte considerável do elenco.
Cena de Bom Dia, Eternidade, encenação apresentada na Mostra Lucia Camargo do Festival de Curitiba (Foto: Humberto Araujo)
CURITIBA – Em Bom Dia, Eternidade, encenação de Luiz Fernando Marques (Lubi) que reúne uma banda composta por músicos idosos e atores do grupo O Bonde, diferentes camadas de tempo se entrelaçam. Essa articulação se manifesta por meio da conjugação entre passado e presente (ainda que o título do espetáculo aponte para a transcendência de períodos delimitados), tanto no campo temático quanto na conexão entre teatro e cinema.
Na esfera do tema, a interação entre tempos distintos está na base da história, centrada na abrupta e violenta remoção de uma família negra que mora na periferia de São Paulo, em 1964, e o reencontro dos irmãos, nos dias de hoje, ao conquistarem o direito de recuperar a terra roubada.
No que diz respeito ao cinema e ao teatro, um jogo de oposição se estabelece. O primeiro é destacado como forma artística atada ao passado, na medida em que consiste na reexibição de material já gravado (apesar do espetáculo mesclar sequências pré-gravadas com cenas registradas e projetadas no instante da apresentação), e o segundo como vinculado ao presente, por acontecer no aqui/agora, diante do espectador.
Luiz Fernando Marques, em sintonia com a dramaturgia de Jhonny Salaberg, proporciona uma contracena dos tempos. Há um constante espelhamento entre atores e músicos de idades variadas – com os mais jovens reproduzindo gestos e externando as vivências dos mais idosos e, ocasionalmente, dando vazão a números de dança.
Mas algo não se mistura na estrutura do espetáculo: a natureza poética da dramaturgia burilada e a concretude dos depoimentos dos músicos, projetados nas cortinas estampadas da cenografia. Mesmo que a realidade esteja entranhada na proposta dramatúrgica, há diversos momentos em que ficção e documentário surgem como linguagens divorciadas.
Por mais contundentes e oportunos que sejam os depoimentos – que trazem à tona as jornadas pessoais e profissionais dos músicos, os obstáculos enfrentados em decorrência do preconceito racial e da sexualidade –, o impacto da montagem reside na evocação de lembranças familiares, com a casa e a figura da mãe como personagens fundamentais, como elementos ausentes, mas onipresentes.
A mãe aparece nos permanentes relatos dos filhos a partir de um quadro com sua imagem. E a casa é representada principalmente pelo espaço do quintal, símbolo da união de uma família que, obrigada a se separar com a remoção, fortalece os laços após a morte da mãe. Um espaço que não é materializado diante do público, e sim sugerido por meio de objetos afetivos (animal de cerâmica, vestido, rádio, pano de prato e, em especial, as cortinas rendadas e estampadas) que integram a cenografia do próprio Luiz Fernando Marques. As cortinas não são posicionadas no fundo do palco do Teatro da Reitoria, mas dividem o espaço da cena e o da banda.
A cenografia é não só expressiva como sintética, preocupação que também transparece no trabalho de direção, a exemplo da representação das árvores do quintal nos corpos dos músicos, dispostos, em breves passagens, de costas para a plateia. A concepção cênica é favorecida pela iluminação de Matheus Brant, que oscila entre as cores intensas que inundam a cena e tonalidades crepusculares.
O elenco do grupo O Bonde (Ailton Barros, Filipe Celestino, Jhonny Salaberg e Marina Esteves) demonstra habilidade com o texto e no manejo dos objetos. Os músicos Cacau Batera, Luiz Alfredo Xavier, Maria Inês e Roberto Mendes Barbosa emocionam o público com a exposição de seus percursos atravessados pela superação de adversidades.
Bom Dia, Eternidade é um espetáculo que se alonga além do necessário e que nem sempre promove o entrosamento entre linguagens (ficção e documentário). O espectador, porém, tende a sair sensibilizado com a revelação das trajetórias dos músicos e com o brilho de uma dramaturgia que aborda as calorosas vivências nos quintais familiares.
Reynaldo Gianecchini e Tainá Müller em Brilho Eterno (Foto: Annelize Tozetto)
CURITIBA – Jorge Farjalla é um diretor que procura imprimir assinatura autoral na transposição dos textos para a cena. Não por acaso, costuma classificar seus espetáculos como versões a partir de originais dramatúrgicos. A determinação em frisar uma marca própria vem norteando as montagens de peças heterogêneas, como Doroteia, que ocupa lugar singular dentro da obra de Nelson Rodrigues, e O Mistério de Irma Vap, exemplar do humor nonsense de Charles Ludlam que serve de veículo de atuação para intérpretes com pleno domínio do jogo da comicidade histriônica.
Em Brilho Eterno, encenação apresentada no Teatro Guaíra, Farjalla confirma a disposição em interferir nos textos que monta. Apesar de não ter se debruçado sobre uma peça, e sim sobre um filme – Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças (2004), de Michel Gondry, que inspirou anteriormente outra montagem, Memória Afetiva de um Amor Esquecido, dirigida por Ivan Sugahara com o grupo Os Dezequilibrados –, a postura dessacralizada em relação às obras de origem se mantém. Tanto que produziu, em parceria com André Magalhães, uma dramaturgia que parte do filme, dialogando com ele, ao invés de “simplesmente” transportá-lo para o palco.
A apropriação criativa de Farjalla se manifesta na concepção visual imponente (mesmo que as contribuições artísticas sejam de profissionais distintos, há um entrosamento com a visão do diretor), na inclusão de referências diversas que ambicionam aproximar o público do espetáculo e na quebra de uma cena ilusionista por meio de procedimentos que sublinham o fato de se estar frente a um acontecimento teatral, como a movimentação do cenário a cargo dos atores e o uso de blusas com o título da montagem e o sobrenome de cada integrante do elenco no verso (figurinos de Farjalla).
Mas a necessidade de fixar uma identidade artística pessoal carece de consistência. Os elementos diferenciais de um espetáculo como Brilho Eterno não parecem decorrer de um estudo verticalizado da obra de base. A inventividade fica mais concentrada no plano da forma – através do investimento numa estética de impacto – e da intrincada estruturação da cena – por meio das implicações temporais na interação dos protagonistas e das intervenções de um coro profano, de reduzido resultado cômico. Há uma menor valorização da questão principal da história: a urgência em apagar as lembranças como modo de apaziguar o sofrimento lancinante e a constatação de que as boas memórias também serão deletadas. A encenação não aproveita o potencial dolorosamente romântico que se poderia extrair do vínculo entre os personagens.
Diante de uma certa frieza no manejo dos conteúdos, o público tende a acessar a montagem a partir das criações visuais, cabendo destacar a integração entre a proposta cenográfica (de Rogério Falcão) – uma espécie de cubo desdobrado em ambientes, com expressivo contraste entre preto e branco – e a iluminação (de Cesar Pivetti) – que “rasga” a cena em tom igualmente neutro, padrão cromático relativizado pela protagonista feminina, que insere cores mais vibrantes. As proposições estéticas se sobrepõem, em algum grau, aos trabalhos dos atores. Reynaldo Gianecchini e Tainá Müller trilham caminhos interpretativos opostos: enquanto ele envereda por desenho de atuação mais estilizado, intencionalmente artificial, buscando, nas entonações, a estranheza, ela aposta em registro mais naturalista, próximo ao cotidiano. Wilson de Santos, Renata Brás, Fábio Ventura e Tom Karabachian demonstram sintonia com a linha do espetáculo.
Com apreciáveis qualidades individuais, Brilho Eterno, porém, é uma montagem em que o desejo de Jorge Farjalla de afirmar sua originalidade não surge amparado por uma leitura aprofundada do filme, lacuna que limita o ansiado voo artístico independente.
Jorge Amado, Dorival Caymmi e Carybé em 3 Obás de Xangô: Prêmio do público (Foto: Divulgação)
A Mostra de Tiradentes vem afirmando uma identidade artística ligada a um cinema autoral, sem concessões, que desafia o público. Dessa 28ª edição, encerrada no último domingo sob a coordenação de Raquel Hallak d’Angelo, Fernanda Hallak d’Angelo e Quintino Vargas Neto, diretores da Universo Produção, saíram vencedores os longas-metragens Deuses da Peste (2024), de Tiago Mata Machado e Gabriela Luíza (Mostra Olhos Livres), Parque de Diversões (2024), de Ricardo Alves Jr. (Mostra Autorias), Um Minuto é uma Eternidade para quem está Sofrendo (2025), de Fábio Rogério e Wesley Pereira de Castro (Mostra Aurora), e 3 Obás de Xangô (2024), de Sérgio Machado (Júri Popular).
O importante, porém, não é “tão-somente” informar o resultado. No início da Mostra, durante a apresentação da programação pelos curadores, uma inquietação fundamental surgiu na plateia: “onde vão parar os filmes exibidos na Mostra de Tiradentes?”, perguntaram. Afinal, a maioria das produções não chega ao circuito comercial ou, caso chegue, dificilmente alcança repercussão junto ao público. “Os filmes vão parar no HD. E, às vezes, o diretor perde o HD e o filme deixa de existir. Talvez muitos dos filmes exibidos na Mostra Aurora nem existam mais”, respondeu Francis Vogner dos Reis, coordenador curatorial e integrante da curadoria de longas-metragens (ao lado de Juliana Costa e Juliano Gomes), acerca da parte do festival, que, antes destinada a trabalhos de cineastas que tivessem realizado até três longas, agora ficou concentrada em filmes de estreia. Como se pode notar, a Mostra de Tiradentes representa um estímulo heroico a um cinema que não é abraçado pelo mercado exibidor. “Alguns diretores fazem seus filmes com dinheiro próprio. Como garantir a continuidade deles? A história do cinema brasileiro é feita de interrupções”, constatou Francis.
Esse convite ao debate desponta num instante favorável para o cinema brasileiro, celebrado pelo sucesso de Ainda Estou Aqui (2024), filme de Walter Salles que já levou quatro milhões de espectadores ao cinema e recebeu três indicações ao Oscar nas categorias filme, filme internacional e atriz (Fernanda Torres). Outra produção recente que fez bonito na bilheteria foi O Auto da Compadecida 2 (2024), de Guel Arraes e Flavia Lacerda. A receptividade a esses filmes é uma excelente notícia. Mas será que sinalizam uma retomada do prestígio do cinema brasileiro junto ao público? Ou são aclamações específicas decorrentes da repercussão internacional e do elo afetivo com um dado universo? Perguntas parecidas se estendem à produção estrangeira. Será que a boa ocupação das salas nas exibições de filmes como Conclave (2024), de Edward Berger, A Semente do Fruto Sagrado (2024), de Mouhammad Rasoulof, e A Substância (2024), de Coralie Fargeat, significa um retorno do espectador aos cinemas após a pandemia, quando muitos se acostumaram a consumir material audiovisual dentro de casa? Ou se trata “apenas” de um favorável momento pontual motivado pelo frisson do Oscar?
Historicamente, o cinema brasileiro viveu períodos de grande adesão de público, valendo lembrar das chanchadas da Atlântida, das pornochanchadas da Boca do Lixo e das aventuras de Os Trapalhões. Pela via da comédia ou do apelo erótico, tais produções, gestadas em décadas diferentes, atraíam enorme quantidade de espectadores. Mas, à medida que o tempo passou, o cinema deixou de ser uma diversão popular. Os preços dos ingressos subiram cada vez mais, o contexto político se revelou extremamente adverso (governo Collor, marcado pela extinção da Embrafilme) e apareceram novas formas de entretenimento impondo dura concorrência. Nos últimos anos, poucas produções conseguiram furar tantos obstáculos – basicamente os filmes protagonizados por Paulo Gustavo e por um grupo restrito de comediantes.
Mas há ainda um outro dado que não diz respeito a épocas particulares: a reduzida conexão entre um cinema investigativo ou de experimentação, como o priorizado na Mostra de Tiradentes, e uma faixa mais abrangente de público. Por isso, o investimento num evento cinematográfico com um recorte artístico ousado é bastante louvável. Ao invés de mirar numa aposta “segura” a partir de determinados indicativos de mercado, a Mostra procura, ao contrário, jogar luz sobre uma produção que não costuma ser valorizada nem pelo circuito exibidor, nem por uma plateia mais ampla.
Cena de Parque de Diversões, filme de Ricardo Alves Jr. vencedor da Mostra Autorias em Tiradentes (Foto: Caio Thielmann)
Ricardo Alves Jr. abre mão, em Parque de Diversões, de contar uma história ao espectador, que “tão-somente” acompanha personagens em suas incursões sexuais noturnas no Parque Municipal de Belo Horizonte. Não significa, porém, que a proposta seja solta ou abstrata. Há, no roteiro de Germano Melo, uma ordenação dos acontecimentos, de certa forma, tradicional.
Exibido na 28ª Mostra de Cinema de Tiradentes, o filme começa com figuras anônimas caminhando nas proximidades do parque, onde entram e transitam isoladamente até estabelecerem as primeiras interações sexuais que, à medida que a projeção avança, se tornam cada vez mais explícitas. O diretor também investe uma espécie de apanhado de fetiches eróticos, como se ambicionasse reunir um mix dos mais conhecidos.
Mas a priorização de uma estrutura algo convencional – que contrasta com a ousadia da realização – não determina o resultado. Bem mais importante é a dramaturgia do corpo num filme que quase não utiliza a palavra – talvez a não abdicação total sinalize uma insegurança do cineasta. Seja como for, a força das imagens se impõe logo nos minutos iniciais, com a abertura furiosa das grades do parque, gesto que evidencia o desejo não domesticado.
Os trajetos individuais pelo parque sugerem uma experiência repleta de libido e um pouco sinistra. No entanto, apesar do frisson ligado ao sexo descompromissado em espaço público (cruising), o diretor não aborda esse universo como ameaçador ou violento.
O protagonismo do corpo não se manifesta apenas na exposição dos atos sexuais. Reside no modo como o corpo é mostrado. Símbolo do voyeurismo, o olho impera num filme em que a vontade de observar não inibe a participação. E o destaque à visão vem à tona através da ausência dela. Um dos personagens é cego e, numa cena, escuta a descrição do encontro sexual que supostamente se desenrola na sua frente. Esse encontro não é revelado. Nem ele e nem a plateia sabem se, de fato, a narrativa corresponde à ação. Num filme tão explícito, Ricardo Alves Jr. não deixa de valorizar o implícito, a camada sonora ao invés da mera sucessão de imagens de choque.
Ainda em relação ao corpo, muitos fragmentos são registrados em close. Em dados momentos, o diretor apresenta, em separado, corpos e rostos, como se não houvesse uma integração entre ambos. Mas tanto uns quanto outros surgem na tela como expressões cruas e latentes do desejo. Essas possibilidades de associação são mais instigantes do que a oposição entre os brinquedos infantis do parque de diversões diurno e as práticas sexuais noturnas.
Parque de Diversões não alcança o impacto de um filme centrado na volúpia como O Fantasma (2000), de João Pedro Rodrigues. Ricardo Alves Jr. mantém apego a escolhas habituais, a exemplo da previsível evolução da intensidade física e da preservação, mesmo que restrita, da palavra. Mas o cineasta orquestra uma mobilizadora dança de corpos ardentes.
A memória do teatro vive em permanente risco. Mesmo nos dias de hoje, quando a preocupação com o registro dos espetáculos é notadamente maior que em décadas anteriores, não há como reter o acontecimento teatral. Uma apresentação é sempre diferente da outra. E, por mais longeva que seja a carreira de determinada montagem, a última noite inevitavelmente chegará.
Os melhores registros não reproduzem o momento imediato de conexão entre ator e espectador. Mas são fundamentais, ainda mais numa época em que a quantidade de programas impressos é cada vez menor. Um livro como Festival de Teatro de Curitiba (Edições Sesc São Paulo), que traz uma seleção de fotos de espetáculos captados por Lenise Pinheiro ao longo de 30 anos – 1992 a 2022, excetuado 2021 por causa da pandemia – de cobertura do evento, é, sem dúvida, um feito muito importante. Reúne preciosos instantâneos de cenas de montagens emblemáticas. Depois do lançamento na recém-encerrada edição do Festival de Curitiba, o livro ganha hoje nova sessão de autógrafos, no Sesc Pompeia, em São Paulo, acrescida de conversa entre Lenise e a dramaturga Luh Maza, com mediação de Gabriela Melão.
Se no monumental Fotografia de Palco, publicação dedicada ao ator e fotógrafo Fredi Kleemann, Lenise dividiu a vasta seleção de fotos em capítulos voltados para recortes das encenações (figurinos, cenários, iluminação), em Festival de Teatro de Curitiba o destaque recai sobre os rostos dos intérpretes, em close, apesar de várias fotografias evidenciarem as cenas de maneira ampla, panorâmica.
A trajetória de Lenise no Festival de Curitiba já tinha rendido, em 2022, uma exposição, intitulada Viva! 30 Anos, disposta no vão livre do Museu Oscar Niemeyer. Vale lembrar que Lenise também lançou um livro em homenagem ao Teatro Oficina (Fotografias – Teatro Oficina), no qual documentou os espetáculos desde a reabertura da companhia, rebatizada de Uzina Uzona – de As Boas a Cacilda!!!. Em relação a Festival de Teatro de Curitiba, livro intercalado com depoimentos de artistas e da própria Lenise, não há como mencionar todos os espetáculos representados por meio das fotos, mas cabe ressaltar alguns, ano a ano:
1992
Sonhos de uma Noite de Verão
Direção: Cacá Rosset
Elenco: Grupo Ornitorrinco
As Boas
Direção: José Celso Martinez Corrêa
Elenco: Teatro Oficina/Uzyna Uzona. Ator convidado: Raul Cortez
Miriam Virna, Cleani Marques e Catarina Acioly em Ir e Vir, parte do projeto Felizes para Sempre, dos Irmãos Guimarães (Foto: Lenise Pinheiro)
2004
O que Diz Molero
Direção: Aderbal Freire-Filho
Elenco: Chico Diaz, Augusto Madeira, Orã Figueiredo, Raquel Iantas.
Agreste
Direção: Marcio Aurélio
Elenco: Joca Andreazza e Paulo Marcello
2005
Foi Carmem
Direção: Antunes Filho
Elenco: Centro de Pesquisa Teatral (CPT)
Hysteria
Direção: Luiz Fernando Marques
Elenco: Grupo XIX de Teatro
Baque
Direção: Monique Gardenberg
Elenco: Deborah Evelyn. Emílio de Mello, Carlos Evelyn
2006
A Descoberta das Américas
Direção: Alessandra Vanucci
Elenco: Julio Adrião
Otelo da Mangueira
Direção: Gustavo Gasparani
Elenco: Marcelo Capobiango, Claudia Ventura, Susana Ribeiro, Gustavo Gasparani, Ana Carbati, Patrícia Costa, Jorge Medina, Juliana Clara, Lilian Valeska, Sheila Mattos, Pedro Lima, Marcelo Vianna, Erika Riba, Sueli Guerra, Anderson Mello, Aldri Anunciação, Rodrigo França, Jurema da Mata, Jorge Maya
2007
A Alma Imoral
Direção: Amir Haddad
Elenco: Clarice Niskier
A Hora e a Vez de Augusto Matraga
Direção: André Paes leme
Elenco: Vladimir Brichta, Fábio Lago, Jackson Costa, Ernani Moraes, Pedro Gracindo, Georgiana Góes, Marcelo Flores, Adriano Saboya, Cyda Morenyx, Francisco Salgado
Besouro Cordão de Ouro
Direção: João das Neves
Elenco: Alan Rocha, Ana Paula Black, Cridemar Aquino, Gilberto Santos da Silva Laborio, Iléa Ferraz, Leticia Soares, Mauricio Tizumba, Nívea Magno, Raphael Garcia, Sergio Pererê, Valéria Monã, Victor Alvim Lobisomem, William de Paula, Wilson Rabello
2008
Aqueles Dois
Direção e atuação: Cia. Luna Lunera
2009
Rainhas
Direção: Cibele Forjaz
Elenco: Georgette Fadel e Isabel Teixeira
O Estrangeiro
Direção: Vera Holtz
Elenco: Guilherme Leme Garcia
A Mulher que Escreveu a Bíblia
Direção: Guilherme Piva
Elenco: Inez Viana
2010
Till, a Saga do Herói Torto
Direção: Júlio Maciel
Elenco: Grupo Galpão
In On It
Direção: Enrique Diaz
Elenco: Emilio de Mello e Fernando Eiras
Memória da Cana
Direção: Newton Moreno
Elenco: Os Fofos Encenam
Simplesmente Eu, Clarice Lispector
Direção: Amir Haddad
Elenco: Beth Goulart
Vida
Direção: Marcio Abreu
Elenco: Companhia Brasileira de Teatro
2011
Inverno da Luz Vermelha
Direção: Monique Gardenberg
Elenco: Marjorie Estiano, Rafael Primot, André Frateschi
Sonhos para Vestir
Direção: Vera Holtz
Elenco: Sara Antunes
Oxigênio
Direção: Marcio Abreu
Elenco: Companhia Brasileira de Teatro
Sua Incelença, Ricardo III
Direção: Gabriel Villela
Elenco: Clowns de Shakespeare
2012
Julia
Direção: Christiane Jatahy
Elenco: Julia Bernat, Rodrigo dos Santos
De Verdade (Ou a Mulher Certa)
Direção: Marcio Abreu
Elenco: Kika Kalache e Guilherme Piva
Palácio do Fim
Direção: José Wilker
Elenco: Vera Holtz, Camila Morgado e Antônio Petrin
O Idiota: Uma Novela Teatral
Direção: Cibele Forjaz
Elenco: Mundana Companhia de Teatro
A Peça do Casamento
Direção: Pedro Brício
Elenco: Guida Vianna e Dudu Sandroni
O Jardim
Direção: Leonardo Moreira
Elenco: Cia. Hiato
Estamira – Beira do Mundo
Direção: Beatriz Sayad
Elenco: Dani Barros
Ato de Comunhão
Direção e atuação: Gilberto Gawronski
Luis Antonio-Gabriela
Direção: Nelson Baskerville
Elenco: Cia. Mungunzá de Teatro
Gilberto Gawronski em Ato de Comunhão (Foto: Lenise Pinheiro)
2013
Esta Criança
Direção: Marcio Abreu
Elenco: Companhia Brasileira de Teatro
Pólvora e Poesia
Direção: Marcio Aurélio
Elenco: João Vitti e Leopoldo Pacheco
2014
Contrações
Direção: Grace Passô
Elenco: Debora Falabella e Yara de Novaes
Cais ou Da Indiferença das Embarcações
Direção: Kiko Marques
Elenco: Velha Companhia
Quem tem Medo de Virginia Woolf?
Direção: Victor Garcia Peralta
Elenco: Zezé Polessa, Daniel Dantas, Erom Cordeiro e Ana Kutner
BR Trans
Direção e atuação:Silvero Pereira
2015
Gotas D’Água sobre Pedras Escaldantes
Direção: Rafael Gomes
Elenco: Luciano Chirolli, Gilda Nomacce, Nana Yazbek, Felipe Aidar
2016
Um Bonde Chamado Desejo
Direção: Rafael Gomes
Elenco: Maria Luisa Mendonça, Eduardo Moscovis, Virginia Buckowski, Donizeti Mazonas, Fabrício Licursi, Fernanda Castello Branco e Matheus Martins
Urinal
Direção: Zé Henrique de Paula
Elenco: Núcleo Experimental
Caranguejo Overdrive
Direção: Marco André Nunes
Elenco: Aquela Companhia
2017
Antígona
Direção: Amir Haddad
Elenco: Andréa Beltrão
A Casa dos Budas Ditosos
Direção: Domingos Oliveira
Elenco: Fernanda Torres
2018
A Ira de Narciso
Direção: Yara de Novaes
Elenco: Gilberto Gawronski
Tom na Fazenda
Direção: Rodrigo Portella
Elenco: Armando Babaioff, Gustavo Vaz, Kelzy Ecard e Camila Nhary
Grande Sertão: Veredas
Direção: Bia Lessa
Elenco: Caio Blat, Luisa Arraes, Luiza Lemmertz, Leon Góes, Daniel Passi, Leonardo Miggiorin, Balbino de Paula.
Cena de Sonho de uma Noite de Verão, encenação da Trupe Ave Lola (Foto: Maringas Maciel)
Reproduzir no palco a natureza esplendorosa minuciosamente descrita por William Shakespeare nas páginas de Sonho de uma Noite de Verão é uma tarefa quase impossível. Ana Rosa Genari Tezza, à frente da Trupe Ave Lola e dessa montagem do grupo (atração do Fringe na recém-encerrada edição do Festival de Curitiba), não procura reconstituir tais imagens. Ao contrário, investe na síntese. É justamente a construção da cena a partir de elementos reduzidos que acentua a teatralidade desse trabalho.
Na contramão dos aparatos tecnológicos, essa encenação busca estimular a imaginação do espectador por meio de recursos restritos – basicamente lençóis e praticáveis. Há pouco mais na ambientação cenográfica de Daniel Pinha, como a cortina de tiras vermelhas, cor também escolhida para o chão. Mesmo com o impacto do vermelho, a concepção estética é marcada pelo predomínio do branco e do preto dos figurinos de Ana Rosa Genari Tezza e Helena Tezza, com destaque para transparências.
A percepção de que a arte teatral independe de um acúmulo de objetos surge manifestada na própria peça de Shakespeare. Como afirma o carpinteiro Pedro Cunha, um dos integrantes da representação preparada para a cerimônia de casamento de Teseu e Hipólita, “essa nesga de grama será nosso palco”.
Personagens reais e fantásticos se mesclam nessa peça, ambientada, em boa parte, num bosque nas proximidades de Atenas. Nessa fantasia amorosa, oscilante entre sonho e realidade, jovens, confrontados com a intolerância dos mais velhos, simbolizada por Egeu, fogem para não se separarem. Os quiproquós emocionais incluem Hérmia, Helena, Lisandro e Demétrio, que têm seus sentimentos momentaneamente alterados por uma espécie de poção mágica pingada nos olhos pelo irrequieto duende Bute.
Os trabalhadores, que experimentam o ofício da atuação nos mencionados ensaios para a representação, acabam sendo inseridos numa teia de enganos que agita esse suave exemplar da dramaturgia de Shakespeare. Ao ensaiarem o interlúdio, os trabalhadores se conscientizam da distância entre ator e personagem. Falam sobre a importância de alertar o público para o fato de que não estão se fundindo, se amalgamando, aos personagens, mas que permanecem descolados deles, apesar de portarem as identidades ficcionais durante a apresentação.
Ainda que envolva o leitor/espectador na atmosfera de um mundo delirante e febril (como a paixão), Shakespeare rompe com a ilusão ao frisar o teatro como fingimento, como artifício. Em sintonia com essa perspectiva, o elenco da Trupe Ave Lola – formado por Cesar Matheus, Helena de Jorge Portela, Helena Tezza, Kauê Persona, Larissa de Lima, Marcelo Rodrigues, Pedro Ramires, Wenry Bueno e Willa Thomas – não encarna os personagens, não some por trás deles, mas se dedica a um registro em que a interpretação intencionalmente aparece, assim como a qualidade no dizer o texto.
A opção por Sonho de uma Noite de Verão é coerente com a trajetória da Trupe Ave Lola, que costuma se afastar do realismo e enveredar pela trilha do onírico. A conexão do público com o espetáculo é favorecida pelo espaço de apresentação – uma tenda, erguida na sede da companhia – que realça o caráter lúdico da empreitada.
Leandro Knopfholz e Fabíula Bona Passini dividem a direção do Festival de Curitiba (Foto: Annelize Tozetto)
Ao chegar à 32ª edição, o Festival de Curitiba evidencia preocupação com a preservação de suas características centrais, mas sem ceder à acomodação. Permanecem a programação dividida entre mostra oficial (rebatizada de Mostra Lucia Camargo, em homenagem a uma das curadoras do festival, que morreu em 2020) e Fringe. Dentro disso, porém, diversas propostas despontaram ao longo do tempo. A mais recente é a Mostra Surda de Teatro, voltada para montagens concebidas em torno do protagonismo de artistas surdos.
No que se refere à programação oficial, os grupos de curadores têm mudado. Já estiveram nessa função os críticos Alberto Guzik, Macksen Luiz e Tania Brandão, os jornalistas João Cândido Galvão e Celso Curi, a gestora cultural Lucia Camargo, o diretor Marcio Abreu e o ator Guilherme Weber. No momento, a curadoria é assinada pela produtora Daniele Sampaio, pela atriz Giovana Soar e pelo crítico Patrick Pessoa.
O Fringe, que surgiu em 1998 seguindo o modelo do Festival de Edimburgo, foi criado com o objetivo de apresentar ao público um apanhado da cena brasileira através da oferta de espetáculos reunidos por inscrição e não por seleção. Depois o Fringe passou a contar com mostras internas que, de alguma maneira, localizam o espectador em meio à variedade de atrações.
As alterações que vêm marcando o festival também estão ligadas à troca ou da inclusão de nomes na direção do evento. Em 1992, o festival era capitaneado por Carlos Eduardo Bittencourt, Cássio Chameki, César Heli Oliveira, Leandro Knopfholz e Victor Aronis. Aos poucos, os sócios migraram para outros projetos. Leandro e Cássio, por exemplo, foram trabalhar na prefeitura de Curitiba. A condução do festival ficou a cargo, entre 2001 e 2007, de Victor, que se distanciou para se dedicar ao Festival de Dança de Joinville. Hoje Leandro se encontra à frente do festival juntamente com Fabíula Bona Passini, que, no decorrer do tempo, exerceu funções diferentes dentro do festival: apoio na bilheteria, recepcionista, produtora e, agora, diretora. O festival, felizmente, está com as próximas edições garantidas, graças ao patrocínio trienal da Petrobras.
Entrevista / Leandro Knopfholz
Como era a estrutura de programação nos primeiros anos do festival?
O festival começou em 1992. Mas o primeiro Fringe aconteceu em 1998. Desde o início havia a Programação Associada, que reunia os espetáculos em cartaz em Curitiba. Em 1997 conheci o Fringe no Festival de Edimburgo. Sugeri que fizéssemos aqui também. Mapeamos mais de 100 possíveis salas de apresentação em Curitiba, mas poucas se encontravam em estado de utilidade. Equipamos minimamente as salas e inauguramos o Fringe. Oferecíamos, além da sala, som, luz e um profissional. O Fringe ganhou projeção. Também seguindo o exemplo de Edimburgo, onde o Fringe é uma grande feira, comecei a convidar programadores.
O Fringe se propõe a ser um espaço democrático, que reúne centenas de espetáculos por inscrição. Mas em que medida essa democratização é possível quando, por questões econômicas, a maior parte dos espetáculos que participa do festival é do Sudeste?
Sempre quis ter espetáculos de todos os estados do Brasil. Em determinado momento achamos que o Fringe ficou confuso e passamos a organizar mostras internas.
Como surgiram essas mostras?
Em 2003, Diogo Portugal nos procurou e propôs uma mostra de stand-up. Assim surgiu o Risorama. Depois, inspirado no Taste, realizado em Edimburgo, criamos o Gastronomix. Não inventei nada; copiei. Mas fui o primeiro a copiar. Também fizemos a mostra XXX, voltada para espetáculos eróticos, e outras: MishMash, Mostra dos Excluídos.
A partir da sua memória emotiva, quais os espetáculos que você destacaria ao longo dessas 32 edições do festival?
Sonho de uma Noite de Verão, com direção do Cacá Rosset, A Bao a Qu, da Companhia dos Atores, As Boas, do Teatro Oficina, A Vida é Sonho, assinado por Gabriel Villela, The Flash and Crash Days, espetáculo do Gerald Thomas, Corra enquanto é Tempo, A Farsa da Esposa Muda, A Rua da Amargura – esses três do Grupo Galpão –, Nova Velha História, encenação do Antunes Filho, Roberto Zucco, montagem de Nehle Franke, Angeli, d’Os Parlapatões, a Trilogia Bíblica (Paraíso Perdido, O Livro de Jó, Apocalipse 1,11) concebida por Antonio Araujo no grupo Teatro da Vertigem, A Máquina, espetáculo de João Falcão, 25 Homens, com direção de François Kahn, e Needles and Opium, assinado por Robert Lepage. Apesar de Curitiba ser considerada uma cidade careta, tivemos apoio para trazer espetáculos polêmicos, como O Melhor do Homem, encenação do Ulysses Cruz que foi cancelada em São Paulo por causa da temática gay, e os mencionados Sonho de uma Noite de Verão e as encenações da Trilogia Bíblica. A questão da inclusão veio depois. Nesse sentido, outro trabalho que integrou a programação foi BR Trans, solo de Silvero Pereira.
Como se dá a divisão de tarefas entre você e Fabíula na direção do festival?
Fico com a parte de patrocínio e orçamento. Aliás, graças ao patrocínio trienal da Petrobras – a primeira vez que conseguimos –, as edições de 2025 e 2026 já estão garantidas. Fabíula fica voltada para produção e programação. Mas pretendo me afastar. Estou cansado. Tenho aceitado “não” como resposta muito rápido e isso não é bom.
Entrevista / Fabíula Bona Passini
Como começou a sua ligação com o Festival de Curitiba?
Sou de Xanxerê, município de Santa Catarina. Comecei a fazer teatro aos 11 anos. Vim para Curitiba cursar faculdade de teatro já por causa do festival. Queria muito trabalhar no festival. Em 2009 abriu uma vaga de apoio na bilheteria. Naquela época, os ingressos não eram vendidos online – só fisicamente. O meu trabalho consistia em conversar com as pessoas na fila para que quando chegasse a hora de comprar já soubessem o espetáculo que iriam assistir. Em 2010 abriu uma vaga de recepcionista. Consegui a vaga. Depois comecei a me envolver com produção executiva e a vontade de ser atriz foi diminuindo. Em determinado momento fiz a direção de produção do festival. Em 2019, Leandro me chamou para a direção do festival. Mas o evento foi cancelado em 2020 por causa da pandemia.
O festival vem mudando os curadores nos últimos anos. Essas mudanças refletem, de alguma maneira, alterações no perfil da programação?
Peguei o momento de passagem da curadoria de Celso Curi, Lucia Camargo e Tania Brandão para Guilherme Weber e Marcio Abreu. Agora a curadoria é assinada por Daniele Sampaio, Giovana Soar e Patrick Pessoa. Estabelecemos que cada grupo de curador deve permanecer no festival durante dois anos. Acho que Daniele, Giovana e Patrick continuam, de certa maneira, o trabalho de Guilherme e Marcio, no que se refere à preparação de um público para o teatro alternativo. Hoje a curadoria se preocupa em convidar artistas e grupos que nunca vieram ao festival. Em todo caso, diversidade é fundamental. Precisamos ter comédias como Duetos e trabalhos identitários como Manifesto Transpofágico. Em alguns casos, o festival convida diretamente espetáculos, como foi o caso de O que nos mantém Vivos?, mas a curadoria abraça essa escolha.
No decorrer do tempo, o Fringe vem passando por alterações, não? Essa parte do festival, destinada à reunião de espetáculos por ordem de inscrição e não a partir de uma seleção, começou a contar com mostras internas.
Depois da pandemia, pensei: ou o Fringe muda ou termina. Não adiantava mais abrirmos um cadastro e fornecermos um espaço. Muitos espetáculos vinham enfrentando problema de falta de público. Também havia a questão da troca incessante de cenários em espaços que abrigavam várias montagens. Criamos um sistema de inscrições de mostras e, a partir daí, selecionamos 10. Cada mostra recebe R$ 5 mil, o espaço e a hospedagem. Estabelecemos que cada companhia deve apresentar quatro espetáculos e uma ação formativa. Além disso, criamos a rodada de negociações: programadores de espaços de diversas cidades vêm assistir aos espetáculos. Isso deu muita vida ao Fringe.
A escolha dessas mostras implica numa curadoria?
Não propriamente. Não olhamos para os espetáculos individualmente, e sim para as propostas das mostras.
O Festival de Curitiba é fundamentalmente destinado à produção teatral brasileira, com raras aberturas para espetáculos internacionais. Há intenção de incluir montagens estrangeiras ou prevalece o desejo de manter o perfil nacional? Na mostra oficial (Lucia Camargo) costumamos ter um espetáculo internacional. Esse ano teríamos três. Mas, por questões econômicas, precisamos tirá-los. Não tínhamos confirmação de patrocinador. Ano que vem queremos fazer uma Mostra Latina.