Realismo suavizado

Liliane Rovaris e Ana Carbatti em As Pequenas Coisas, montagem de Inez Viana para a peça de Daniel MacIvor (Foto: Thais Grechi)
A escrita do canadense Daniel MacIvor, que ganhou projeção nos palcos brasileiros por meio de montagens de alguns de seus textos – In On It, A Primeira Vista, Cine Monstro (que compõem uma trilogia) e A Ponte –, retorna agora com As Pequenas Coisas. Entre as peças do autor já encenadas aqui, essa parece mais próxima de A Ponte, que traz o convívio conflituoso entre três personagens femininas e se aproxima do realismo, e mais distante de outras que oferecem desafios em termos de entrelaçamento de planos e de acúmulo de personagens por um mesmo ator.
A construção dramatúrgica fica menos realçada em As Pequenas Coisas, o que não significa que não exista e nem que o texto seja destituído de atrativos. Um deles reside numa aparente dispersão temática na apresentação das conexões entre três mulheres – Patricia, Nice e Bel. MacIvor frisa tópicos, como a hierarquia de classe e a sexualidade, para abordar as barreiras emocionais e morais evidenciadas nas interações entre elas. Não há um protagonismo entre os assuntos inseridos num texto sobre pequenas coisas do cotidiano – que, logicamente, não têm nada de pequenas.
Apesar da estruturação da peça ser menos destacada pelo autor, Inez Viana, diretora do espetáculo em cartaz no Teatro Sesc Copacabana, valoriza a elaboração cênica através de transições intencionalmente abruptas entre as cenas, fazendo com que uma penetre, de maneira breve, na seguinte. Essa proposta relativiza a vertente realista. A cenografia de Marieta Spada também suaviza o realismo, sem quebrá-lo, ao reunir recortes de ambientes representativos para as personagens, com marcante priorização da cor verde. Há reduzidos elementos em cena – a cadeira e a mesa com os objetos de Patricia e o piso colorido onde a criança (figura invisível, mas mencionada com constância) brinca.
Mais uma opção coloca o realismo em suspensão: a escalação de atrizes – Liliane Rovaris e Adassa Martins – que não “fotografam” como mãe e filha (por mais variáveis que sejam as diferenças de idade entre mães e filhas). Essa escolha não se constituiria como um problema caso a linguagem realista tivesse sido rompida de forma mais enfática. Mas o afastamento apenas parcial em relação a esse registro pode levar a indagações. E cabe questionar – independentemente da adesão ao realismo – a rápida resolução dos embates entre as personagens, de início bastante resistentes em abrir mão de suas certezas e defesas cristalizadas.
No entanto, em que pesem as restrições, um espetáculo como As Pequenas Coisas ocupa um lugar importante na temporada ao proporcionar algo que soa rotineiro, mas que se tornou pouco frequente no panorama: a relevância da carpintaria de um texto, concebido a partir da habilidade no desenvolvimento de situações e personagens. A montagem seduz ainda pelo resultado alcançado pelo trio de atrizes. Ana Carbatti, que traduziu a peça, ressalta o comportamento rígido de Patricia por meio da fala contundente e da austeridade física. O súbito movimento de abertura da personagem na convivência com a governanta Nice se deve mais a uma fragilidade da peça do que da atuação. Liliane Rovaris interpreta, com domínio da palavra, Nice, personagem comunicativa, mas de moral arraigada, que enfrenta a relutância de Patricia e os desentendimentos com a filha, Bel. Adassa Martins faz Bel, que passa por menos transformações internas que as demais; a atriz, porém, demonstra integração em cena.
As Pequenas Coisas impõe determinados obstáculos à apreciação do espectador, seja por eventuais circunstâncias improváveis da peça, seja por certa indefinição acerca da linha realista. De qualquer modo, a encenação propicia o bem-vindo contato com um teatro centrado em texto e trabalho de interpretação.
AS PEQUENAS COISAS – Texto de Daniel MacIvor. Direção de Inez Viana. Com Ana Carbatti, Liliane Rovaris e Adassa Martins. Teatro Sesc Copacabana (R. Domingos Ferreira, 160). De qui. a sáb., às 20h e dom., às 18h. Ingressos: R$ 30,00, R$ 15,00 (meia-entrada) e R$ 7,50 (associado do Sesc).