Clássico com saudável inquietação

Patrícia Selonk interpreta Winnie em Dias Felizes, encenação da Armazém Companhia de Teatro para o texto de Samuel Beckett (Foto: João Gabriel Monteiro)
Ao longo da sua jornada, a Armazém Companhia de Teatro vem sendo norteada, em grau considerável, pela alternância entre montagens de textos escritos dentro do próprio grupo – assinados pelo diretor Paulo de Moraes em parceria com o dramaturgo Mauricio Arruda Mendonça – e de peças clássicas. Encenação do original de Samuel Beckett em cartaz na Fundição Progresso, Dias Felizes pertence ao segundo bloco. Mas nos projetos centrados em repertório consagrado, a Armazém não deixa de afirmar sua autoria por meio de proposições inventivas em relação às obras. Além disso, independentemente das escolhas dramatúrgicas, determinadas características, como o trabalho físico vigoroso do elenco, atravessam os espetáculos.
O corpo é um ponto de conexão entre a linguagem da Armazém e os textos do irlandês Beckett, que, tanto nas peças mais desenvolvidas quanto nas curtas, destaca as limitações e as especificidades físicas dos personagens. É o caso da Winnie de Dias Felizes, sugada pela terra à medida que a peça avança. Desse modo, a valorização do corpo não se dá através da livre expansão pelo espaço, da virtuosística demonstração de habilidades. Ao contrário, os movimentos se tornam cada vez mais reduzidos – no primeiro ato, Winnie aparece da cintura para cima e no segundo, apenas sua cabeça fica fora da terra. Para a atriz que interpreta a personagem é um desafio, e não uma facilitação.
Na obra de Beckett, o importante não está “tão-somente” no que o espectador vê, mas também naquilo que permanece interditado ao olhar, como uma parte do corpo de Winnie. A criação do figurino (de Carol Lobato) não se restringe à parcela exposta do corpo, mesmo que a totalidade da roupa só seja integralmente revelada no encerramento do espetáculo, quando a atriz se desprende da estrutura cenográfica. O figurino sugere certa proximidade com uma linha clownesca. O afastamento do real desponta ainda na concepção do cenário (de Carla Berri e Paulo de Moraes), que, apesar da concretude da espacialidade – uma rampa sustentada por rochas –, evidencia o artifício. O corpo de Winnie afunda, mas ela não parece estar sendo engolida pela terra. O sol abrasador não passa de imagem exibida numa tela. Não há a intenção de fornecer ao público uma fidedigna reprodução visual da situação-base do texto.
Paulo de Moraes não subverte a peça de Beckett. De qualquer maneira, apresenta uma proposta de leitura. O contraste entre o prognóstico trágico de Winnie e seu otimismo inquebrantável é suavizado na encenação. Mas o diretor investe em abordagem minuciosa que realça transições contidas no texto, pontuadas com sutileza na iluminação de Maneco Quinderé. Esse colorido dramático marca a interpretação de Patrícia Selonk, que não uniformiza a trajetória de Winnie, manifestada entre solilóquios existenciais e breves interações com o marido, Willie, papel feito por Felipe Bustamante (que reveza com Isabel Pacheco e Jopa Moraes). Selonk domina a palavra, qualidade minimizada na metade final do espetáculo, quando o diretor intensifica o aparato multimídia. A imagem propositadamente gasta, poluída, falha, de Winnie na tela suscita interessante articulação com a crescente ameaça à sobrevivência da personagem. Essa acentuação da imagem na tela, porém, estabelece inevitável concorrência com a presença da atriz no dispositivo cenográfico. E a música de Ricco Viana adquire interferência excessiva na cena.
A montagem de Dias Felizes proporciona ao público contato com a dramaturgia clássica, encenada com pouca frequência no Rio de Janeiro. As eventuais ressalvas ao resultado decorrem da saudável inquietação de Paulo de Moraes na transposição do texto para o palco.
DIAS FELIZES – Texto de Samuel Beckett. Direção de Paulo de Moraes. Com Patrícia Selonk, Felipe Bustamante/Isabel Pacheco/Jopa Moraes. Espaço Armazém/Fundição Progresso (R. dos Arcos, 24). De qui. a sáb., às 19h30 e dom., às 19h. Ingressos: R$ 80,00 e R$ 40,00 (meia-entrada).