Fragmentos de humanidade

Avenida Paulista, da Consolação ao Paraíso, espetáculo de Felipe Hirsch em cartaz no Teatro Popular do Sesi (Foto: Flavia Canavarro)
SÃO PAULO – Em Avenida Paulista, da Consolação ao Paraíso, Felipe Hirsch evoca o passado e aponta para o futuro. A ligação mais imediata é com Avenida Dropsie, espetáculo que dirigiu há 20 anos e foi apresentado no mesmo Teatro Popular do Sesi, realização assumidamente homenageada nessa nova empreitada. Ao invés do panorama de Nova York, conforme traçado pelo quadrinhista norte-americano Will Eisner, o curitibano Hirsch radiografa outra avenida, localizada no coração de São Paulo.
Como em trabalhos anteriores de Hirsch, em especial nas montagens que assinou na Sutil Companhia, o intercâmbio entre o teatro e diversas manifestações artísticas (música, cinema, quadrinhos, artes plásticas) sobressai. Aqui, a música é mais do que objeto de valor afetivo – dimensão que tinha para o protagonista de A Vida é Cheia de Som e Fúria, adaptação do romance de Nick Hornby que rendeu encenação de Hirsch. Impõe-se como elemento central da dramaturgia (a cargo de Hirsch, Caetano W. Galindo, Guilherme Gontijo Flores e Juuar), composta, em grande parte, pela junção de canções inéditas de artistas variados (direção musical de Maria Beraldo) que produzem atmosferas, retratam o cotidiano e expressam o que os personagens sentem.
A revisita a momentos emblemáticos de seu percurso profissional não é o único aceno ao passado lançado por Hirsch, que também sugere imagens de um tempo mais distante, marcado pelos trajes de gala usados pelo elenco em cenas ocasionais. Esse período remoto contrasta com a igualmente rápida projeção do futuro, mostrado com desesperança, pelo menos no que diz respeito à sobrevivência do teatro (“aqui era um teatro”, relata a guia de turismo, mencionando o espaço teatral como curiosidade museológica).
Nesse espetáculo construído a partir de uma reunião de instantes, todos são coadjuvantes diante do protagonismo da Avenida Paulista, descrita como área de circulação democrática, o que não significa destituída de atritos. Os personagens são figuras passageiras, breves, circunscritas a situações específicas, eventualmente desenvolvidas nos quadros que compõem a estrutura fragmentada da encenação. Essa proposta limita a possibilidade de conexão do público com os personagens, ainda que eles não surjam esvaziados de humanidade, a exemplo do homem que, logo após ser demitido no dia do seu aniversário, se depara com uma festa surpresa e, desestabilizado, consulta uma mãe-de-santo. Os personagens nem sempre existem em função dos contextos social e econômico, por mais preponderantes que estes sejam. A esfera da subjetividade desponta em algumas das passagens mais expressivas do espetáculo.
De qualquer modo, a abordagem de Hirsch é bem mais abrangente do que individualizada. Os personagens se somam na heterogeneidade que atravessa a Avenida Paulista. Não por acaso, a cenografia de Daniela Thomas e Felipe Thassara é constituída por um prédio simbólico (com projeções, ao fundo, de outros prédios), arquitetura representativa da imponência da região. Nas janelas desse edifício, os personagens anônimos – e os músicos – aparecem em ações concomitantes. A diversidade do painel humano é realçada nos figurinos de Cássio Brasil. Esse realismo fotográfico ganha certa relativização na excelente iluminação de Beto Bruel, que, apesar de demarcar a luminosidade diferenciada das fases do dia, transcende a busca pela reconstituição fidedigna e cria imagens poéticas repletas de gradações. No elenco, Amanda Lyra, Georgette Fadel, Marat Descartes e Verónica Valenttino apresentam composições mais destacadas, mas os demais integrantes (Aretha Sadick, Fernando Sampaio, Gui Calzavara, Helena Tezza, Jocasta Germano, Kauê Persona, Lee Taylor e Roberta Estrela D’Alva) demonstram plena adesão ao projeto. A força do conjunto se torna mais relevante que brilhos unitários.
Avenida Paulista, da Consolação ao Paraíso nasceu a partir de um convite para comemorar os 60 anos do Sesi-SP e os 20 anos de Avenida Dropsie. A comunicação entre Paulista e Dropsie fica evidente tanto na proximidade temática quanto na concepção do espetáculo (essa segunda montagem chega a reproduzir, de maneira sintética, a famosa cena da chuva da primeira). Mas Avenida Paulista possui um pertencimento mais amplo dentro da trajetória de Felipe Hirsch, que parece cada vez mais dedicado a produções ambiciosas, a julgar pela engenharia cênica e pelos elencos numerosos, e menos voltado para montagens de pequeno porte. A priorização desse formato implica em determinadas perdas – considerando o crescente afastamento de encenações minimalistas e refinadas, como Não sobre o Amor, e singulares, como Por um Novo Incêndio Romântico –, mas não se traduz necessariamente como estagnação. Diretor sintonizado com o presente, Hirsch dialoga com o passado e mira o futuro.
AVENIDA PAULISTA, DA CONSOLAÇÃO AO PARAÍSO – Texto de Caetano W. Galindo, Felipe Hirsch, Guilherme Gontijo Flores e Juuar. Direção de Felipe Hirsch. Com Amanda Lyra, Aretha Sadick, Fernando Sampaio, Georgette Fadel, Gui Calzavara, Helena Tezza, Jocasta Germano, Kauê Persona, Lee Taylor, Marat Descartes, Roberta Estrela D’Alva e Verónica Valenttino. De qui. a sáb., às 20h e dom., às 19h. Teatro Popular do Sesi (Av. Paulista, 1313). Entrada gratuita.